Quarta-feira de cinzas

Quarta-feira de cinzas

 

“Se eu ganhasse na loteria, ia percorrer o circuito das micaretas do Brasil!” Em silêncio, o filósofo em minhas mãos chorando pelo fluxo de pensamentos interrompidos, eu agradecia pela total improbabilidade de que aquelas extravagantes versões do carnaval brasileiro se repetissem mundo afora, caso contrário ela atravessaria as fronteiras também. Nunca ganhou um centavo sequer, até porque jamais perderia seu precioso tempo de foliã com questões mundanas como o trabalho, ou mesmo uma fezinha na casa de apostas mais próxima. Ainda assim, mal ouvia alguém pronunciar as sílabas micarê, arrumava uns trocados não-se-sabe-onde e lá ia ela, camiseta multicolorida, sorriso pregado na cara e dedo em riste pedindo carona. Passou noites e noites em repúblicas amontoadas de gente saindo pelas janelas – ela inclusive, literalmente. Quando nem essa pequena sorte sorria, acomodava-se em bancos de praça mesmo; quem precisa de conforto para entrar no ritmo do axé-samba-funk dos carnavais fora de época? 

Numa dessas muitas paragens, recebeu uma proposta capaz, pelo menos na estranha ótica dos foliões de carteirinha, de deixar qualquer ganhador solitário da mega-sena acumulada no chinelo. Considerada a micareteira com o pulo mais alto do circuito, foi convidada para passar o carnaval – ele mesmo! – que se aproximava com hospedagem paga no hotel mais sofisticado do Rio, com direito a motorista particular para levá-la à Marquês de Sapucaí, onde assistiria ao desfile das escolas de samba no camarote mais badalado de todos os muitos carnavais que pipocam ano a ano no Brasil. Sem repúblicas suadas, parapeitos de janela ou amontoados de gente se acotovelando enquanto tiram os pés do chão. Ao saber da boa nova, até eu, quase nada afeita às festas de Momo, emergi das letras para cumprimentá-la por aquela façanha. Ela deu apenas um muxoxo. Guardou as preciosas passagens de avião na última gaveta da cômoda, tomou-me o livro das mãos sem pedir licença e sentou-se para ler.

 
Táscia Souza

Publicado originalmente em http://hipocondria.blog.terra.com.br, 25 de fevereiro de 2009.

One Response

  1. …tenho um pensamento que para se ter o “melhor-de-tudo”, esse precisa ser lutado, puxado, agarrado, perseguido; assim a conquista terá um sabor, ainda que de ressaca, de ter tido “o melhor-de-tudo”.