Insônia

Insônia

 

Ela tinha tanto sono que os pais se esqueceram até da cor dos seus olhos. Nas poucas horas diárias em que as pálpebras se abriam, desvelavam um olhar embaciado, meio indolente, indesejoso de se deixar gastar pelo mundo além de si mesmo. A apatia começara anos antes, como uma forma de adormecer a tristeza. Esgotada por lágrimas que teimavam em não se esgotar, decidiu barrar-lhes o caminho. Enquanto durmo não choro, teorizava ela, refugiando-se na pretensa analgesia dos que fingem sonhar sem dor.

Com o tempo, o sopor evoluiu para prostrar expectativas. Enfastiada de esperar o inesperável, soterrou-se sob montanhas de travesseiros e edredons. Enquanto durmo não vejo o tempo parar, murmurava de olhos fechados. O tempo, obediente, não parava mesmo, apoderando-se do corpo na mesma proporção em que o sono se apropriava do espírito.

Quando passou uma semana inteira sem erguer as pálpebras, a mãe achou por bem levá-la ao médico. Exames neurológicos demais e resultados de menos acabaram transferindo a responsabilidade para um analista. Na hora marcada ela deitou-se no divã, impaciente por um cochilo. Esperou que a voz dele lhe acalentasse o repouso, mas o silêncio do terapeuta teve o efeito de um despertador estridente. Por que ele não me pergunta nada? Por que não quer saber o que tenho? Por que eu não consigo dormir?, apavorava-se, com os cílios cerrados. Quando ele roncou, arregalou os olhos, de repente castanhos e brilhantes.

Não dormiu naquela noite.

 

Táscia Souza

4 Responses

  1. “O tempo, obediente, não parava mesmo, apoderando-se do corpo na mesma proporção em que o sono se apropriava do espírito.”
    Muito bom. De verdade mesmo. Adorei Tascia!

  2. Oi Táscia! Também entrei na brincadeira do blog!
    Olha o meu depois!
    Adorei “Insônia”! Tem um ar delicado, um não sei o que de Clarice Lispector.

  3. “Não dormiu naquela noite”, eu bem sei do que se trata; mas aqui tratamos de sua “Insônia” que está excelente. Parabéns.
    Vanízia