Até o último gole

Até o último gole

Olhos lindos ele escreveu e talvez tenha sido o princípio. Do abismo sim.

O copo espichou-lhe os olhos vítreos por cima do balcão, o coquetel de culpa transbordando, entornando no guardanapo. Podia sentir na coxa o chamado vibrante do celular, insistente, que ele escondera no bolso para que a moça não visse a luz que o mandava para longe. O silêncio sempre o deixava meio bêbado, mas era melhor que ela lesse sua amargura do que a ouvir jorrar de seus olhos condenados. Enquanto ela mirava o papel, ele bebericou um pouco e o gosto de remorso líquido desceu queimando pela garganta afora. Por fim, terminaram juntos: ela virou a última página; ele, a última gota de autorrepúdio. Os olhares se encontraram devagar, meio que embriagados de si. O celular insistia. “Essa aqui sou eu?”, a moça sorriu maliciosa, o ego afagado pela heroína da história. Ele devia dizer: “Não, esta”, e apontar para a outra, a que terminava sozinha sentada num balcão de bar. Havia ensaiado mil vezes, repassado cada palavra no caminho. A garrafa de arrependimento, contudo, já estava vazia.

Desligou o celular.

Táscia Souza

2 Responses

  1. …Que olhar é esse?! tão diferenciado, capaz de capturar imagens, vozes e pensamentos, e traduzi-los por palavras, magicamente esculpidas… a deixar-nos com olhos alegremente sorridentes.

    …é impossível ficar calado!

  2. Olhares acompanhados de silêncios eloquentes. Dizem muito mais do que seria possível definir num verbete de dicionário!