Entre votos e pecados

Entre votos e pecados

Miguel Arcanjo era, antes de tudo, temente a Deus. Católico fervoroso, praticante, desses de ir à missa todos os domingos e cumprir as orientações dadas pelo padre na homilia ao longo da semana. Seguia as palavras do sacerdote até na hora de votar.

Foi assim quando, há mais ou menos dez anos, parou de vender seu voto. Antes fazia o que o dono da fazenda mandava, mas depois bateu o pé. Lembrava até hoje das palavras na cartilha distribuída na paróquia: “Voto não tem preço, tem consequência”. Achou o termo bonito e tentou descobrir o sentido. O padre explicou que a palavra pomposa queria dizer resultado. “Significa que, se você vender seu voto para um político ladrão, o resultado é que vai ser roubado ainda mais, entendeu?”

Miguel Arcanjo entendia. E passou a dar o voto de graça, para aqueles candidatos mais amigos. Eram tão amigos que às vezes traziam alguns presentes, mas não era por isso que o peão votava. Ficava até indignado quando a mulher sugeria que ele aceitasse o agrado e desse o voto a outro alguém. De jeito nenhum! Era honesto até a alma.

Na eleição deste ano, porém, não havia nenhum candidato amigo na cidade. Um tinha aparecido na TV recebendo dinheiro para aumentar a passagem de ônibus; o outro foi preso por trocar voto por caixão. Na dúvida, correu para a igreja a fim de pegar a cartilha do padre.

“Esse ano tem a Lei da Ficha Limpa, meu filho, que não deixa os políticos que já foram condenados se candidatarem”, explicou o religioso. “Mas mesmo se o candidato não tiver sido condenado, se você tiver certeza de que é corrupto, não deve votar.” Miguel Arcanjo tinha certeza, então não podia votar em nenhum deles. “Mas ninguém deve anular seu voto!”, alertou o sacerdote, para espanto do fiel. “A anulação certamente favorecerá candidatos não indicados para funções tão nobres como a de exercer o poder em nome do povo.”

Miguel Arcanjo foi dormir confuso, com uma consciência inconsciente de que vivia seu primeiro drama moral. A consequência de sua dúvida na urna não se sabe; com a graça de Deus voto é secreto. Mas quem nunca tiver pecado que atire a primeira pedra.

Táscia Souza

One Response

  1. Eu vivo num constante drama moral!
    E por mais alerta, vivo pecando! Pois embora analise, a corrupção vem me driblando…

    ótimo!