Aceitarão

Aceitarão

 

Com uma desculpa de família, não foi ao trabalho. Com uma desculpa de trabalho, não foi em casa almoçar. Com uma desculpa para si próprio, pegou o carro e foi para o Rio. Seu parceiro era o GPS recentemente comprado, recém-compreendido.

Foi escutando música, conversando consigo mesmo, pensando na vida, tomando decisões, reencontrando o passado. Quando percebeu já tinha descido a serra. Sentiu-se tão encurralado pelo calor, pela atribulação ao redor, pelo desconhecido.

Vomitou na beira da estrada. Veio o clarão a respeito do que fazer. Voltou.

Em casa, diria que ia sair do emprego. No trabalho, que largaria a esposa. Até que, no momento dessas revelações, a mulher noticiou que engravidou, e o chefe contou que ele havia sido promovido. Não tinha como renegar as novidades.

Ficou em silêncio nas duas situações: não sabia se deveria expressar verdadeiramente o que sentia ou se teria de recalcar como sempre. As respostas foram as mesmas, era um homem patético:

– Uau, quanta sorte! Isso era realmente o que eu precisava. Tudo faz mais sentido agora.

 

José Eduardo Brum

2 Responses

  1. “Todo dia ela faz tudo sempre igual…”, você me fez lembrar de “Cotidiano”, do Chico Buarque. O homem se prende àquilo que se sente mais seguro, mesmo estando inseguro. A vida o leva e ele não leva a vida. “Patético”, sim, mas talvez ele só esteja desejando ausência de perturbação, mesmo sabendo que seus próprios demônios não o deixarão em paz. Todos vivemos (quase) em função dos tais demônios. Ótimo texto, José Eduardo!

  2. É o tal do homem como uma gota de água levado na onda da vida. Sobe e desce, ao sabor do acaso. Pra muitos, um homem infeliz. Pra outros, um privilegiado com pequenos instantes de felicidade. É isso o que difere uma pessoa da outra: o que te satisfaz?

    Texto forte e que incomoda. Faz pensar.
    Usar (bem) as palavras é mesmo um dom.

    Parabéns, meu amigo, você é um talento!