Inclinações

Inclinações

Começou com uma leve inclinação, essa palavra estranha que, em livros do século XIX, distinguia o esboço de uma paixão avassaladora entre um homem e uma mulher. Acontece que não era uma inclinação comum. Quer dizer: literalmente, todos os dias, ela de fato se inclinava sobre o livro do século XIX e suspirava de paixão, que a princípio parecia só um esboço, mas que aos poucos foi se configurando num quadro completo, com todos os matizes dignos de um retrato de uma história de amor. Acontece que o homem da história – já que ela, obviamente, fazia as vezes da mulher – era, na verdade, personagem de uma outra história. Personagem mesmo, daquela mesma história sobre a qual ela se inclinava dia e noite. Era um homem de papel.

Tudo não passaria de um caso clássico de carência afetiva (um pouco psicótica, talvez, mas banal) se não fosse o fato de ela não ser uma carente propriamente dita. Ela era casada; sua vida, entrelaçada diante do altar, vestida de branco, a um homem dedicado, amoroso, fiel até o dedo do pé, que fazia questão de dizer-lhe todas as horas o quanto era linda, meiga, adorada. Para completar, ele também não era um tipo de doutor Bovary, romântico e estúpido. Pelo contrário. Era inteligente, bonito, alto, forte, capaz de incliná-la sobre uma cama com uma só mão. Mas nem as reflexões mais racionais eram capazes de tirar-lhe o outro da cabeça. Aquele que usava casacas, que abria porta de carruagens e que provavelmente a chamaria de senhorita até na hora de… bem, incliná-la na cama.

O romance chegou ao limite quando o marido, enciumado, cansado de tentar abraçá-la sob os lençóis enquanto ela mantinha os olhos pregados na leitura, deu-lhe um ultimato: ou ele ou eu. Ela fechou o livro e apagou o abajur. No entanto, no dia seguinte, na livraria da esquina, comprou-lhe de presente uma edição comemorativa da Playboy.

Táscia Souza

One Response

  1. Coelhinhas malhadas, devidamente siliconadas com perfis ecológicos num regalo de frutas.

    Afrodisíacas? Inconteste; cardioestimulantes!

    E pra se apaixonar um romance do século XIX.