Category Archives: Gilze Bara

Vós negais ou Filme de terror sem fim

Vós negais ou Filme de terror sem fim

Custou a perceber que havia alguma coisa (muito) estranha no ar
Custou a perceber que não era uma gripezinha
Custou a perceber que precisava mudar de hábitos
Custou a perceber que era melhor respirar por debaixo de um pedaço de pano do que não respirar mais
Custou a perceber que não era nada demais a mão ficar toda ressecada de tanto passar álcool
Custou a perceber que era melhor trabalhar de casa, porque podia fazer isso
Custou a perceber que a ameaça era real
Custou a perceber que a vida nunca mais seria a mesma
Custou a perceber que era uma doença também social
Custou a perceber que eram vidas, muito além de números
Custou a perceber que não valia a pena arriscar
Custou a perceber que não valia a pena passear
Custou a perceber que não valia a pena aglomerar
Custou a perceber que tudo só estava piorando
Custou a perceber que era melhor passar o Natal a sós, se quisesse atravessar outras natividades
Custou a perceber que o ano novo não era tão novo assim — e que poderia ser pior — e que seria pior
Custou a perceber que um monte de conhecidos estava morrendo — que amigos estavam morrendo — que familiares estavam morrendo
Custou a perceber que a população de seu país estava sendo dizimada
Custou a perceber que não dava pra ficar bem com tudo o que estava acontecendo
Custou a perceber que estava cada dia mais difícil sorrir
Custou a perceber que estava cada dia mais fácil chorar e se desesperar
Custou a perceber que havia perdido sua humanidade quando perdeu a empatia pelas pessoas
Custou a perceber que não queria virar estatística
Custou a perceber que não conseguia mais respirar direito
Custou a perceber que havia perdido sua vida pra Covid
Adoeceu pelo menos umas dez pessoas
Matou cinco delas
E nem percebeu.

Gilze Bara

Antídoto

Antídoto

Acordou.

Levantou.

Foi ao banheiro.

Ainda sem proferir uma palavra sequer, lembrou de sua própria voz.

E foi inundada pelo medo: “E se minha voz não sair mais da minha boca? E se eu nunca mais puder falar?”.

O primeiro lamento que veio em sua mente foi: “Imagina não poder mais xingar em alto e bom tom??!?!”.

Mais do que depressa, lascou um sonoro “PUTA MERDA!”.

Gilze Bara

Ciúme em tempos pandêmicos

Ciúme em tempos pandêmicos

Ela andava terrível nos últimos tempos…

Cansada, enjoada, sentindo-se contrariada, rebelde.

Fazia um misto de revolta e luta por independência.

Por sua independência.

Às vezes simplesmente ignorava as ordens cerebrais.

Outras vezes as cumpria, mas com falhas, deixando sempre algo escapar.

Quando se concentrava bem, até que fazia direitinho tudo o que tinha que fazer.

Fato é que ela pagava o preço por tanto trabalho.

Eram mais de 12 horas de labor por dia.

Na secura do ar ou no úmido da água.

Digitando, digitando, digitando…

Lavando, lavando, lavando…

E quando ela parava, não parava de verdade – tinha sempre um algo mais.

E se era solicitada a fazer aquilo que lhe dava tanto prazer… nada.

Seca. Entressafra.

Recusava-se a colocar as escritas da mente no branco da tela do computador.

Foi quando um amigo deu aquela cutucada e matou a charada:

– Desenha! A mão deve estar com ciúme do teclado!

E ela desenhou as letras com lápis, numa folha de papel.

E a paz se fez novamente.

Gilze Bara