Category Archives: José Eduardo Brum

Doente por tudo aquilo que sempre se torna pessoal.

Tia Nira

Tia Nira

Os 86 anos só eram entregues pelas bochechas altas e proeminentes que esticavam a pele do rosto, dando a impressão de vivência. Para minhas afilhadas, no entanto, as maçãs do rosto eram engraçadas, diferentes, com ar de bruxa de conto de fadas. Fora isso, os cabelos mantinham-se cheios e vivos, apenas ganhavam uma tintura aqui e acolá pra disfarçar os sinais grisalhos. O corpo era leve com muito orgulho, porque a mantinha em movimento, ativa, ao contrário das sobrinhas que herdaram o corpo pesado, sedentário e acomodado. As pernas sempre foram secas e finas; os seios, baixos e parados, mesmo depois de ter amamentado direto por quatro anos. A diferença entre o casal de filhos era de um ano e seis meses.

Apesar de tantas experiências, de ter visto inúmeras mudanças no país, de ter acompanhado a saga familiar de desunião e desestruturação, apenas um fato a marcara. Aos 18 anos, ficara viúva. Podia ter imaginado qualquer infortúnio, menos aquilo. Casara-se aos 16 com um senhor de 43 anos que a adorava. Já estavam no segundo filho quando o coração não aguentou tamanha devoção. Parou. De repente, tudo o que se esperava dela, como esposa e mãe, ruiu. Estava livre, com pensão gorda e casa própria.

Não quis outro homem em casa, os filhos não tiveram um pai. Não tinha fotos do esposo pelos cômodos, sonhava todas as noites com ele. Não precisava trabalhar para se manter, arranjava bicos de costura para dar exemplo aos rebentos. Não tinha telefone fixo para evitar o contato de piedade dos familiares, alegrava-se com as visitas surpresas. Não acompanhava os filhos e netos nas viagens de família, aproveitava o passe livre da idade pra conhecer lugares singelos e sem atrativos:

– Tem algum arrependimento, tia? – pergunto quando ela está em silêncio, depois de ter contado um pouco de sua trajetória.

Ela pensa, esvazia o copinho de cerveja:

– Tenho. Não devia ter comido o segundo pedaço de pizza. O estômago é o único órgão que mantenho sem sobrecarregar.

José Eduardo Brum

Na toca

Na toca

Escondia as coisas, desde que se conhece por gente. A mãe conta que ela passou a andar com menos de um ano, mas se alguém a pegava dando passos, caia no chão e voltava a engatinhar. Só foi revelar o som da voz, aos cinco, quando entrou na escola, embora nunca tenha sido aluna de fazer perguntas. Só observava.

Acima da média, ela não pôde prosseguir os estudos, porque tinha engravidado aos 13 anos. Revelou a barriga quando estava prestes a nascer. O choque, a decepção e a fúria da família ajudaram-na a acobertar o fato de que tinha sido abusada, uma única vez, totalmente indefesa num terreno baldio. Quis gritar e não conseguia. Nada saia fácil dela. No fim do estupro, permaneceu retorcida, afundada na areia, como se pudesse desaparecer.

Teve a filha de cesariana, não dilatava. Amamentou sem ninguém ver. Trabalhava fora sem saberem onde e quanto ganhava. Apenas carregava uma máquina fotográfica. Nutria o desejo de ser psicóloga, em guardar os segredos e problemas alheios, nunca revelando-os a ninguém. Acabou aceitando que muita coisa não precisava ser dita ou explanada para que se possa viver.

José Eduardo Brum

Sem falas

Sem falas

Num fim de mês, o drama perdeu o lírico e o épico. Perdeu não, deixou de ter por perto. Assim como as grandes tragédias, personagens saem de cena. Voltam. Permanecem presentes na história, mesmo sem serem vistos pelo público. São imprescindíveis das mais variadas formas.

Embora tenha sabido que tal afastamento era inevitável, não se preparou, porque drama se representa no “acontecendo”, no aqui e agora. Assim, deu-se conta de que a poesia ia brilhar sua luz verde e reverberar sua musicalidade amorosa apenas quando não as teria mais. E entendeu que o épico ia ser exigente e gentil além-mar, espalhando-se como deveria ser.

Por isso, fiel à essência, o dramático apenas ousou a usar palavras e falas, sem descrição, sem lirismo, sem grandiloquência. É tempo de…

José Eduardo Brum