Category Archives: José Eduardo Brum

Doente por tudo aquilo que sempre se torna pessoal.

Bagagens intransponíveis

Bagagens intransponíveis

Sentados na mesma mesa, Carlinhos estava acompanhado dos filhos e da esposa. Vitão carregava uma barriga bem saliente. Ainda tinham assunto, afinidade, encanto e afeto após décadas sem se verem, apenas ouvindo os sucessos alcançados, prefeitura e bispado respectivamente. De qualquer forma, o papo fluía sem apelarem pras questões banais de trabalho. Não se tocavam, não rememoravam, não cruzaram olhares. As pessoas entregam-se nos pequenos detalhes. Às vistas dos mais novos, era esperançoso perceber o reencontro de uma amizade antiga, de dois camaradas de longa data. As matronas e os senhores, por outro lado, evitavam mirar (embora julgassem) devido ao assunto e à pouca vergonha, relembrando o quão grudados eram. Até demais. A bondade, o apoio mútuo, a dedicação e a entrega não são evocadas no decorrer; escândalos, confusões, deboches e maldade perduram. As inconvencionais formas de amor incomodam mesmo anos depois que terminam.

José Eduardo Brum

Choque de Culturas

Choque de Culturas

A culpa é da egípcia. Foi tudo culpa dela. Por dias, eu a ignorei, a achava feia, desengonçada. Tinha cara de nova, envolta em panos e tecidos bregas, totalmente desarmônicos nas formas e cores. Eu me sentia moderna e viva. Hoje, ela não me sai da cabeça. E eu nunca mais irei encontrá-la ou confrontá-la.

Na nossa viagem, as únicas interações com a egípcia foram duas, a voz autoritária de rainha da verdade que irrompiam e incomodavam de tempos e tempos, e o esbarrão que ela me deu no ônibus, ao gritar e gesticular que o veículo parasse, pelo amor a Alá, já fora do estacionamento do hotel. Todos riram. Eu sorri. Todos debocharam. Eu me alegrei, sentindo minha autoridade.

Enquanto a egípcia ia resgatar o passaporte, trancafiado no cofre do quarto, acariciei meu filho, sonolento. Era praticamente um presságio, como se ele já estivesse se desligando. Eu também quase adormeci, não fosse pelo retorno dela ao ônibus, quase 15 minutos depois.

Pra todos, a egípcia bravejava que não se arrependia do que fez, pois era uma pessoa sensata. Disse que assim que entrou nas dependências, guardou o passaporte e acabou esquecendo. Junto de europeus e outros americanos, tranquilos e relaxados, sem nunca terem vivido tempos atribulados, a atitude de precaução passou a ser vista como um deboche velado.

Por causa da egípcia, o motorista voou pra chegar a tempo nos locais destinados do nosso passeio turístico. E também esvoaçou mureta abaixo, caindo num rio. Naquela confusão, a última vez que a vi, ela ajoelhava e gesticulava, como se rezasse agradecendo por ter sido salva. Estava em júbilo. Escutei alguém traduzindo que ela sempre implorara por mais água no deserto onde viveu na juventude. Deus mandara a dádiva na hora certa, para ampará-la da morte.

E eu só queria lavar meu filho sujo de sangue e imóvel, já gelado. Pedindo que, por um milagre, ele abrisse os olhos e se mexesse.

José Eduardo Brum

De cujus corporal

De cujus corporal

– Sou ator de corpo. Uso o meu corpo nas cenas e gravações há mais de 20 anos.

– Ah, sim, sei. Dublê.

– Não. Não sou dublê, sou ator de corpo. Sou aquele que fica numa cena atrás, preenchendo o espaço. Adoro quando tem de compor uma fila, dá pra aparecer bastante e criar toda uma situação.

– Ah, sim, agora sei. Figurante.

– Não. Não sou figurante, sou ator de corpo.

– E tem diferença?

– Claro. Tem até ator de texto. Olha só pros nomes de cada! Figurante só figura, é paisagem, é o que chamamos de “árvore 23” nas produções infantis. Não faz nada. É inanimado.

– Pra mim, dublê, figurante e ator de…, isso aí que você diz ser…

– Ator de corpo.

– Sim, ator de corpo. É tudo a mesma coisa. Não é famoso, fica em segundo plano. Não aparece de verdade.

– Você é quem pensa. Eu tenho de criar, sabia? Toda vez, preciso pensar em quem é aquele senhor sentado na praça, como ele vive, se tem amigos e família, o que viu na vida. Depois, introjeto isso e planejo a forma como meu corpo vai se portar quando interpretar esse personagem. É mais que técnica. Tem toda uma concepção artística.

– Pra mim, isso continua sendo figuração.

– Lógico que não! Presta atenção na nomenclatura. O figurante é quase um cenário. Nós, atores de corpo, damos vivacidade e camadas. Podemos até roubar a cena, tá?

– Aposto que paga mal.

– Claro que paga! Arte costuma não dar dinheiro, a não ser que você seja famoso comercialmente. Ah, dublê corajoso e que finge bem também ganha uma boa grana.

– Fingir? O dublê finge?

– Ele tem que fingir, é substituto nato. Não pode parecer que é um dublê, tem que se camuflar. Pra mim, são todos uns santos. Eles emprestam o corpo pr’um ator não sofrer. Uma vez, quando era mais novo, tentei ser dublê, que desastre! Quase tive que vir aqui pedir aposentadoria antes do tempo. Deus me livre! Adoro ser ator de corpo. É minha vida!

– Ué, e por que está aqui? Pelo que vejo ainda faltam alguns anos pra aposentar.

– Tecnologia, meu caro. Não precisam mais da gente. Não precisa mais de gente. Agora preenchem todo o espaço cênico com pessoas digitalmente criadas. O ser humano ficou obsoleto até nas artes.

José Eduardo Brum