Boxe entre prateleiras

Boxe entre prateleiras

Quem o via todos os dias assim, sentado no fundo da biblioteca, calado e sozinho, não imaginava a fúria que se escondia por trás de seus óculos redondos e seus ombros curvados. Não possuía bem uma força física, incapaz que era de erguer um dedo para quem quer que fosse. Não por falta de vontade, que fique bem dito; tinha gente que até merecia. A verdade, contudo, era a consciência de que seu porte franzino não o ajudaria muito a sair ileso de uma briga se por ventura resolvesse entrar nela. Por isso lutava apenas com os livros. Literalmente. Ou seria literariamente?

Começou ainda criança, antes mesmo de a professora da pré-escola tentar ensinar aos outros as primeiras letras. Ele aprendeu sozinho, num dia em que os pais o levaram a uma livraria e, cruel e paradoxalmente, proibiram-no de tocar em qualquer espécie de exemplar dizendo que era muito novo para entender aquelas coisas. Quem pensa que as crianças de quatro anos não têm capacidade de se sentir ofendidas é porque não presenciou aquela cena. Endireitou os aros que lhe corrigiam o estrabismo e catou escondido um Monteiro Lobato na estante do fundo. Quando deram por ele já tinha agarrado Narizinho pelas sílabas e pelos cabelos.

Depois disso nunca mais parou de domar palavras. Bastava alguém dizer que era difícil que lá estava ele, sem a menor disposição para deixar o autor vencê-lo já nas primeiras cem páginas. Foi assim com Sartre, Camus, Melville, Hemingway, Guimarães e até com Proust. Mesmo quando não entendia de cara insistia até compreender, arranhando cada letra, esmurrando as palavras uma a uma, até que conseguisse fazê-las ter algum sentido. O final dessas batalhas, porém, encontrava-o ofegante e desfeito, como se tivesse apanhado dez rounds antes de recobrar as forças para o nocaute.

Foram incontáveis lutas até o dia em que a bibliotecária lhe contou a filosofia de Montaigne: “Quando encontro dificuldades na leitura não me preocupo demais, pois se insistisse, perde-me-ia e o meu tempo; meu espírito é de compreensão imediata. O que não entendo à primeira vista, entendo menos me obstinando”. Largou Joyce de lado e abriu uma revista em quadrinhos.

Táscia Souza

2 Responses

  1. A simplicidade é tão complexa que é preciso ser aprendida. Aprender que por vezes menos é mais e que a razão mais filosófica das nossas paixões é simplesmente “gostar”.

  2. Que graça de texto, que graça de personagem, que vontade de brincar com as palavras noite afora.
    O blog de vocês é lindo, Táscia. Textos, cores e sons. Beijos e vontade de ficar na casa de vocês de novo.