Proibidas convulsões no verão

Proibidas convulsões no verão

É um anticonvulsivante, ela disse, e talvez tenha sido esse prefixo, essa pequena particulazinha indicadora de oposição, que me impediu de convulsionar bem ali. Em vez disso fiquei sentada, na cadeira branca do consultório branco, mostrando só um pouco mais o branco dos olhos ligeiramente arregalados diante do título bordado em seu jaleco branco, enquanto ela despejava que o medicamento em questão, e eu olhando, é usando em tratamento de epilepsia, e eu olhando, mas que se descobriu que off label (foi exatamente assim, eu só olhando) ajuda no controle da compulsão alimentar e consequente perda de peso e… Você precisa pensar?

A pergunta me pareceu justa. É de se supor que uma paciente queira refletir um pouco sobre a ideia de tomar um anticonvulsivante para emagrecer, mas então percebi que a questão era outra quando veio aquele digo, você trabalha com atividades que envolvam raciocínio? Pergunto porque pode acarretar, como efeito colateral, algumas dificuldades cognitivas. Sim, moça do jaleco branco, geralmente eu preciso pensar. Preciso pensar muito. No exato momento, por exemplo, eu tenho uma tese para escrever e entregar daqui a uns meses para ganhar oficialmente o título que você ostenta aí no seu jaleco branco. E talvez fosse até gostar de defendê-la mais magra, ou fosse gostar de a sociedade gostar de achar que eu gostaria de defendê-la mais magra, os gostares meus e da sociedade se misturando até não se saber mais qual gostar e qual vontade é de quem, mas para isso ainda assim preciso escrevê-la, mesmo que a sociedade não goste. Então a gente pode começar com uma dose bem baixa, à noite, para seu organismo ir se acostumando aos poucos, que tal? Toma aqui a receita. Tenho umas amostras grátis aqui também, pode levar. 

Nessa época eu ainda me orgulhava de ser conhecida como uma pessoa inteligente. E de estar escrevendo uma tese, embora uma coisa não implicasse necessariamente a outra. Mas, vejam só, eu tomei. Um quarto da dose dita ideal, toda noite por algumas semanas, e perdi uns dois quilos, obviamente reencontrados depois, e de fato não tive convulsões, o que deve provar que o remédio é eficaz, e os efeitos colaterais não foram tão dramáticos porque não percebi nenhum comprometimento cognitivo nem qualquer ideação suicida, que também estava na bula, eu li depois, a não ser, claro, que conte nesse pacote o fato de aceitar tomar um anticonvulsivante para emagrecer. Provavelmente deve contar. No entanto, quando os dois quilos não viraram três, requerendo medidas mais drásticas na opinião da moça de jaleco branco, saí do consultório também branco com uma receita controlada azul na qual se lia obesidade, palavra mágica que me liberaria, na farmácia, o acesso a algum tarja preta. E então abandonei tudo: a receita no lixo, o remédio na gaveta, a vergonha de colocar um biquíni bem no fundo da minha cabeça. 

Só agora me flagrei pensando, mais de três anos depois, em que dosagens de anticonvulsivantes sociais possivelmente estamos tomando para explicar nossa cognição comprometida, nossa ideação suicida e nosso desejo mórbido de chegar com menos corpos — digo, menos corpos vivos — ao fim do verão.

Táscia Souza

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