Abraços

Abraços

Abracei a primeira pessoa que vi na rua. Naquele tempo foi estranho, antes via gente na rua de quinze em quinze dias, ao sair para as compras. Quando tudo acabou, dei um abraço na primeira pessoa que encontrei. E ela me abraçou de volta. Sem susto, sem surpresa. Foi troca de carinhos, de saudades, de vontade de ser gente na rua de novo. Todo mundo se abraçou. Até hoje a gente se abraça muito, bem mais do que antes de a gente ter que ficar em casa abraçando gato, cachorro, arco da porta. Abraçar gente porque a gente pode abraçar gente é o que nos faz humanos. Todo mundo se abraça hoje em dia, cada abraço gostoso, que preenche. Na fila do banco, na porta do banheiro do bar, na rua sem mais nem quê, todo mundo se abraça. Com a sensação de que sempre falta alguém para abraçar.

Gustavo Burla

Estudo aplicado sobre os usos modais do verbo dar

Estudo aplicado sobre os usos modais do verbo dar

Tudo o que posso dar é minha palavra. Ou talvez sejam palavras, essas que dei pra anotar a esmo e pras quais dei de inventar de dar outros sentidos quando todo sentido já se (per)deu. Meu sono demora a dar as caras pensando que loucura é essa que deu no mundo, pensando que nó é esse que dá na cabeça, pensando nessa merda toda que tem se dado com a gente, pensando que bicho me dá de meter a palavra merda no meio de um estudo linguístico sério, mas perdão é a língua inteira que tenho pra dar. É o mesmo repetitivo pensamento que dá de frente com tudo de ruim que deu no noticiário enquanto a previsão do tempo promete mais uma vez, apesar do frio, que vai dar sol. É o mesmo repetitivo pensamento que dá voltas pelas outras voltas que a gente dava pelas ruas, no café que só dava pra (não) tomar bem rápido nos pequenos intervalos dados pelo tempo, nas pequenas pausas dadas pela vida, essa vida cá-dentro-lá-fora que nem sempre parece dar pra viver, mas que a gente segue vivendo mesmo assim. É o mesmo repetitivo pensamento que dá um curto circuito dentro da gente, que faísca nos sorrisos que poderíamos ter dado e que não demos, que cintila nos abraços que poderíamos ter dado e que não demos, que se incendeia nas palavras que poderiam ter sido dadas e que não foram durante cada conversa que (nos) dava voltas — e elas ainda dão —, sempre dando em nada e nunca dando de fato aonde deveriam dar. A não ser é claro na única confissão que dá pra fazer: de que às vezes dá uma saudade danada, de que às vezes dá um desespero tremendo, de que todo dia a única notícia que se quer dada pelos jornais é de que já dá pra gente se ver de novo. Se der. Quando der.

Táscia Souza

Réveillon

Réveillon

Maldito ano que não acabava!

Chegaria 1h da madrugada, mas não chegava a meia-noite.

Um ano que foi uma pausa forçada – para muitos.

Um ano que foi infinito – para tantos.

Um ano que foi o fim – para milhões.

Desgraça.

Isolamento.

Mortes.

Desemprego.

Política necrófila.

Pandemia.

Mortes.

Cansada de olhar o relógio, deitou.

E adormeceu – cheia de esperança.

Sonhou. Com paz. Vacina. Cura.

Com abraços. Reencontros. Novos encontros.

E, quando acordou, pegou logo o celular para conferir a data:

32 de dezembro de 2020.

Gilze Bara