Fora da van

Fora da van
 
Não ia mais beber. Estava dentro de uma lotação, desejando que ela chegasse o mais rápido possível para que pudesse se reencontrar com a mãe. Estava um calor tremendo que, para ele, era bom, pois dava a sensação de que o álcool estava evaporando de dentro de si. Enquanto o trajeto não terminava, tentava se imaginar fora daquele cubículo, tentando esquecer o cheiro forte e azedo que teimava em não circular. Se tivesse uma arma, atiraria em todos, mas os primeiros seriam o motorista (pela lentidão) e a mulher preta que não parava de falar.

De segundos em segundos, prometia que nunca mais beberia. Que nunca mais colocaria uma gota de álcool na boca. No entanto, esta era uma promessa que nenhum homem da sua família conseguiu cumprir. Todos morreram de cirrose. Ele não sabia, mas estava trilhando o mesmo caminho. Já tomara duas advertências no trabalho, por isso, resolveu não beber nada pela manhã.

Quando pensava em que santo recorrer para fazer uma promessa, um companheiro de viagem (ou de martírio) o cutucou e perguntou:

– Eu te conheço?

Ele olhou bem nos olhos da figura, ao mesmo tempo em que pedia ao juízo que o libertasse do vício da bebida, e também segurava o álcool no estômago para que este não contribuísse para ampliar a podridão dentro da van.

– Eu te conheço, sim. Te vi pequeno. Fui um grande amigo de seu pai. Grande pessoa. Ele me salvou da morte. Sofri um acidente de moto. Fiquei todo quebrado. Se seu pai não tivesse me achado, teria virado comida de urubu. Quando cheguei ao hospital, ninguém acreditava que eu, todo moído, me recomporia. Só o seu pai que, mesmo sem me conhecer, sabia que eu ia recuperar. E aqui estou. Firme e forte. Depois dessa graça, coloquei na minha cabeça que seria um outro homem. Que quebraria obstáculos. Me formei no primeiro grau, tenho meu pequeno sítio e até já ganhei a corrida de 15 km da Festa do Tomate. Deus nos dá exemplos e chances todos os dias, e a gente tem que aprender para não errar.

Na medida em que absorvia as palavras do homem, percebeu que estava jogando sua vida fora. Sabia onde iria parar. A sete palmos. Por outro lado, a bebida não seguiu o mesmo caminho. De uma vez só, colocou para fora a tequila, a cerveja, o vinho, o martini, a cachaça, o flamejante, a caravela, a vodka, o espumante e outras coisas que nem lembrava. O motorista parou como se estivesse prestes a atropelar alguém e, pela primeira vez, a mulher negra se calara (até a sua morte, ela contaria aquele caso às gargalhadas). Todos olharam para trás, ou para ver se haviam sido atingidos ou se o pequeno garoto moreno estava bem. Não, não estava. Estava mais branco que o leite.

Já o homem responsável pela crise, nunca soube que operara um milagre naquela catarse. Assustado, ele só se perguntava:

– O que foi que eu falei?

Contudo, o filho de seu amigo seria eternamente grato a ele, pois tudo seria diferente depois daquele incidente. Pela primeira vez, cumpriria a promessa com atos. Não beberia mais

 

José Eduardo Brum

 

Publicado originalmente em http://hipocondria.blog.terra.com.br, 26 de janeiro de 2009.

Comments are closed.