No lado da van

No lado da van

 

Não podia olhar para frente. Deveria permanecer sempre ereta com a vista voltada para frente. O marido não deixava que ela visse nada no caminho. Aos poucos, conseguia perceber quando ele não a estava vigiando e mirava uma paisagem que nunca visitaria, um carro que nunca possuiria ou uma roupa que nunca vestiria. Mas quando o garoto do último banco passou mal, virou-se rapidamente para verificar se tinha sido atingida. Nesse mesmo instante, a van parou repentinamente, e todos os passageiros foram projetados contra o que estava adiante. Por azar, batera no banco da frente com a cabeça, no mesmo local onde, horas antes, seu marido havia lhe dado quatro murros seguidos, porque a blusa não estava bem passada.

No entanto, por sorte (ou castigo) seu marido fora atingido em cheio. Queria rir, mas não podia. Sabia que, mais tarde, ele a espancaria como se ela tivesse culpa, mas sentia-se vingada. E também caberia a ela limpar a porcaria. Nesses momentos, percebia a existência de Deus. Ele batia nela todos os dias, e nas apostas (que fazia clandestinamente para que o pastor não descobrisse) sempre perdia. Ele a chutava quando dava vontade, e sempre voltava do futebol mais roxo do que uma beterraba. Tapas eram sua forma de demonstrar amor, mas no trabalho era tapeado por todos, já que fazia as tarefas não-pertencentes a ele. 

Todos os passageiros foram saindo, e ela sabia que tinha de ficar. Ele não permitiria que sua esposa socializasse. Um olhar foi suficiente para que houvesse o entendimento. Lá fora, uns discutiam, outros reclamavam. Poucos acudiam o pobre garoto, e ninguém prestava atenção no motorista que falava ao telefone sem saber o que fazer com uma van suja e com um cheiro insuportável.

Ela permanecia no lado da van, podendo pela primeira vez virar o pescoço, observar as casas e os curiosos que chegavam. O odor não a incomodava. Seu marido já havia feito com que ela passasse por coisas piores. A própria mãe achava uma injustiça, dizia que a filha deveria acusá-lo pelas agressões. Quantas vezes ela teve hemorragia interna por causa das surras? Até vários bebês havia perdido por culpa dele, e nunca mais poderia conceber. Não podia fazer nada, era seu marido. Haveria uma forma de ela modificar isso e conseguir a liberdade?

Sim, existia, e ela foi colocada em prática. Anos mais tarde, a mesma van levou parentes do marido para o funeral do mesmo. Havia morrido aos poucos como se a cólera de Deus tivesse chegado devagarzinho e se desenvolvido mansamente. Perdera as funções vitais, seus órgãos não funcionavam como deviam, e ninguém do hospital publico descobriu. Ou suspeitou. Ela o envenenou aos poucos, sentindo-o sofrer por cada tapa, soco e ponta-pé. Bobo, nunca desconfiou.

Depois disso, menos de um ano, passou a andar no banco da frente da van, captando tudo o que via sem se importar com nada. Casara-se com o motorista da van. Por ironia, os olhares de interesse começaram a ser trocados, enquanto ela enterrava o marido maldito.

 

José Eduardo Brum

 

Publicado originalmente em http://hipocondria.blog.terra.com.br, 17 de fevereiro de 2009. 

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