Marcas

Marcas

 

Cada um tinha seu ritual, seu momento de fuga da realidade. Como se o corpo congelasse e a mente saísse, voasse e encontrasse aquele período perdido do tempo.

Maria Célia, sempre que arrumava a cama, se lembrava. Ele estava de frente para o espelho, arrumando o quepe. Antes que ela percebesse, ele já havia lançado aquele olhar intenso, carregado, forte. No entanto, como era o último contato entre eles, na hora Maria não percebeu que era um adeus silencioso.

Tina entrava no carro e via a figura dele erétil, calma, imponente e serena no lado do carona. Queria vender o carro para afastar este fantasma. Queria preservar o carro para manter a lembrança. Recordava o cheiro forte do desodorante, a barba sempre bem-feita, a segurança que transmitia, mesmo não olhando para as direções.

Guilherme travava sempre que via uma ambulância. Ressentia sempre na pele aquela certeza fria de que ele já estava morto quando o deitaram na maca e o levaram para o CTI. Os ossos de Gui se tornavam gelados e ele fechava os olhos. A imagem era nítida: ele desacordado, carregado por quatro homens fortes. Guilherme queria ter ajudado, na hora não conseguiu.

Daniel bloqueava, achava que tinha superado. Mas vieram os sonhos. Ele na chuva, ele no quarto, ele sorrindo, ele da mesma maneira de sempre. Seu momento de escape era durante o café da manhã, principalmente se comia sozinho. Lembrava da despedida, quando o viu pela última vez. Ia retornar para a cidade. Ele estava no quarto, esperando o café ficar pronto. Daniel, despedindo-se, deitou em cima do corpo dele, como se quisesse mostrar: “Você ajudou a construir o que sou”.

Os quatro não compartilhavam ou dividiam estas “doces” e “traumáticas” lembranças. Embora todos soubessem que elas existiam. O velório havia revelado: Maria Célia não viu o corpo dele na sala, ficou sentada o tempo todo na cama, encarando o espelho; Tina dormiu dentro do carro; Guilherme, ao contrário, não fechou os olhos, reclamava de uma dor de cabeça latente que parecia uma sirene. Daniel se isolou numa quina de parede, se alguém o abraçava ou tocava, gritava.

Família de malucos? Não creio nisso. Apenas ordinárias pessoas que nunca souberam se desprender.

 

José Eduardo Brum

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