De cujus corporal

De cujus corporal

– Sou ator de corpo. Uso o meu corpo nas cenas e gravações há mais de 20 anos.

– Ah, sim, sei. Dublê.

– Não. Não sou dublê, sou ator de corpo. Sou aquele que fica numa cena atrás, preenchendo o espaço. Adoro quando tem de compor uma fila, dá pra aparecer bastante e criar toda uma situação.

– Ah, sim, agora sei. Figurante.

– Não. Não sou figurante, sou ator de corpo.

– E tem diferença?

– Claro. Tem até ator de texto. Olha só pros nomes de cada! Figurante só figura, é paisagem, é o que chamamos de “árvore 23” nas produções infantis. Não faz nada. É inanimado.

– Pra mim, dublê, figurante e ator de…, isso aí que você diz ser…

– Ator de corpo.

– Sim, ator de corpo. É tudo a mesma coisa. Não é famoso, fica em segundo plano. Não aparece de verdade.

– Você é quem pensa. Eu tenho de criar, sabia? Toda vez, preciso pensar em quem é aquele senhor sentado na praça, como ele vive, se tem amigos e família, o que viu na vida. Depois, introjeto isso e planejo a forma como meu corpo vai se portar quando interpretar esse personagem. É mais que técnica. Tem toda uma concepção artística.

– Pra mim, isso continua sendo figuração.

– Lógico que não! Presta atenção na nomenclatura. O figurante é quase um cenário. Nós, atores de corpo, damos vivacidade e camadas. Podemos até roubar a cena, tá?

– Aposto que paga mal.

– Claro que paga! Arte costuma não dar dinheiro, a não ser que você seja famoso comercialmente. Ah, dublê corajoso e que finge bem também ganha uma boa grana.

– Fingir? O dublê finge?

– Ele tem que fingir, é substituto nato. Não pode parecer que é um dublê, tem que se camuflar. Pra mim, são todos uns santos. Eles emprestam o corpo pr’um ator não sofrer. Uma vez, quando era mais novo, tentei ser dublê, que desastre! Quase tive que vir aqui pedir aposentadoria antes do tempo. Deus me livre! Adoro ser ator de corpo. É minha vida!

– Ué, e por que está aqui? Pelo que vejo ainda faltam alguns anos pra aposentar.

– Tecnologia, meu caro. Não precisam mais da gente. Não precisa mais de gente. Agora preenchem todo o espaço cênico com pessoas digitalmente criadas. O ser humano ficou obsoleto até nas artes.

José Eduardo Brum

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