Tia Nira

Tia Nira

Os 86 anos só eram entregues pelas bochechas altas e proeminentes que esticavam a pele do rosto, dando a impressão de vivência. Para minhas afilhadas, no entanto, as maçãs do rosto eram engraçadas, diferentes, com ar de bruxa de conto de fadas. Fora isso, os cabelos mantinham-se cheios e vivos, apenas ganhavam uma tintura aqui e acolá pra disfarçar os sinais grisalhos. O corpo era leve com muito orgulho, porque a mantinha em movimento, ativa, ao contrário das sobrinhas que herdaram o corpo pesado, sedentário e acomodado. As pernas sempre foram secas e finas; os seios, baixos e parados, mesmo depois de ter amamentado direto por quatro anos. A diferença entre o casal de filhos era de um ano e seis meses.

Apesar de tantas experiências, de ter visto inúmeras mudanças no país, de ter acompanhado a saga familiar de desunião e desestruturação, apenas um fato a marcara. Aos 18 anos, ficara viúva. Podia ter imaginado qualquer infortúnio, menos aquilo. Casara-se aos 16 com um senhor de 43 anos que a adorava. Já estavam no segundo filho quando o coração não aguentou tamanha devoção. Parou. De repente, tudo o que se esperava dela, como esposa e mãe, ruiu. Estava livre, com pensão gorda e casa própria.

Não quis outro homem em casa, os filhos não tiveram um pai. Não tinha fotos do esposo pelos cômodos, sonhava todas as noites com ele. Não precisava trabalhar para se manter, arranjava bicos de costura para dar exemplo aos rebentos. Não tinha telefone fixo para evitar o contato de piedade dos familiares, alegrava-se com as visitas surpresas. Não acompanhava os filhos e netos nas viagens de família, aproveitava o passe livre da idade pra conhecer lugares singelos e sem atrativos:

– Tem algum arrependimento, tia? – pergunto quando ela está em silêncio, depois de ter contado um pouco de sua trajetória.

Ela pensa, esvazia o copinho de cerveja:

– Tenho. Não devia ter comido o segundo pedaço de pizza. O estômago é o único órgão que mantenho sem sobrecarregar.

José Eduardo Brum

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