O filho

O filho

Meses antes haviam começado os enjoos. À mesma hora, toda manhã, quando se sentava na ponta do sofá, perto da porta da varanda, para ler. As letras se embaralhavam e vinha a vertigem, quase sempre seguida de uma azia que queimava do ponto mais baixo do tórax até a garganta, provocada por cada frase mais extensa da prosa da vez. 

Não chegou, porém, a fazer nenhum exame. Não foi preciso. Teve certeza da gestação quando veio o desejo. Forte. Súbito. Incontrolável. Uma vontade insana de comer poesia. Era madrugada. Afora alguns bares resistentes e farmácias necessárias, a cidade dormia. Mais de meio milhão de habitantes e nenhuma livraria ou biblioteca 24 horas aberta.

No apartamento vazio, vasculhou armários e estantes, geladeira e despensa, sem encontrar sequer um Neruda ou Drummond que tivesse sobrado, congelado, vencido, esquecido. Cozinho eu mesma então, pensou, mas a fome era tanta que só fez lambuzar os dedos de grafite e de tinta, lambendo o que ficava nas pontas, por baixo das unhas, sal das palmas que suavam, dos olhos que suavam por dentro e pingavam na página pautada de um velho caderno.

Grávida de desejo insatisfeito, pariu verso. 

Táscia Souza

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