Saudade

Saudade

Como é que pode? Como é que pode algo que não se enxerga, que não se toca, que não bate asas, que não tem pernas, que não tem patas, que não se move sozinho, que não se arrasta sobre as superfícies, que não tem células — que não tem nem uma única célula! —, que é só um amontoado de materiais que configuram existências anteriores à consciência, por eras e eras e eras, como é que pode algo assim provocar esse estrago, essa dor, esse mergulhar no próprio subterrâneo, essa asfixia dentro dos próprios pulmões, essa falta de fôlego, esse buscar o ar sem encontrar, esse afogamento nos próprios fluidos, esse afundar-se em lágrimas e ranho, como é que pode invadir nossa vida de uma hora para outra e tomar tudo, e pairar sobre as ruas, e contaminar o cotidiano, e sorrateiramente atingir nossas casas, e penetrar nosso isolamento, e se esgueirar pelas frestas do nosso esconderijo, e romper nossas máscaras, e se apoderar dos nossos órgãos, cada um deles, até que nosso corpo inteiro seja seu refém? Como é que pode algo vindo de lá do outro lado do mundo, algo que nem um ser vivo é, algo que é só uma palavra trazida por colonizadores numa armada de caravelas e naus, que é só um verbete numa língua que se impôs à força sobre todas as línguas que falávamos antes, machucar tanto assim?

Táscia Souza

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