A milésima primeira noite

A milésima primeira noite

Xerazade era o nome que constava em sua certidão de nascimento, retirado da história de uma rainha persa que a mãe ouvira quando criança e nunca mais esquecera. Rainhas persas eram o mais distante que se podia imaginar da vida de uma mulher naquela comunidade, assim como qualquer história que não fosse o cotidiano pesado de trabalho, necessidade e mesmice. 

Ela, a filha, então já adulta, via-se imitando a heroína que a batizara, contando histórias na madrugada, ininterruptamente, para tentar acalmar o choro infatigável de seu próprio bebê. Quando ele adormecia, numas vezes de acalanto, noutras de exaustão, ela suspirava: menos uma, menos duas, menos mil. O dinheiro da parca pensão que apenas pingava, mesmo depois de envolvidos polícia e processo, se esgotava em igual ritmo, inverso ao crescimento das dívidas com remédio, fralda e leite em pó para compensar o que o estresse roubara do seu.

Faltando apenas 94 dias para o terceiro aniversário do pequeno, quando os jornais anunciaram que o governo decretara o fim do auxílio, o último fio da voz cada vez mais rouca de Xerazade de madrugadas e histórias e choros engolidos se rompeu, restando apenas o som dos gemidinhos baixos da criança, entrecortados de soluço, até cessar. 

Táscia Souza

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