Category Archives: Táscia Souza

Com todos os ites que se possam imaginar.

Ali na esquina

Ali na esquina

O convite era urgente e preciso: me encontre na Via Láctea, no terceiro planeta do Sistema Solar, aquele chamado Terra, daqui a 65 milhões de anos, quando a folhinha mostrar o período quaternário da era cenozoica.

Estarei esperando assim que o ponteiro pequeno do grande relógio marcar 2022 d.C. do calendário que se denominará gregoriano, e que o ponteiro grande estiver no algarismo 7 do sistema que se dirá arábico, e que o longo e fino ponteiro veloz girar do 18º numeral para o 19º do mesmo sistema.

Se ficar aflito no meio de 7,7 bilhões de pessoas, serei aquela de vestido azul e fita branca no cabelo, parada, à sua espera, no instante marcado, nem uma era a mais ou a menos.

Em breve. Bem na esquina.

Táscia Souza

Baticum

Baticum

A vizinha se queixou do barulho da festa. Ameaçou com a polícia, com o código de posturas, com a lei do silêncio, chamou a fiscalização. E não deixava de ter razão. Era bem tarde. Era tão tarde quanto dois anos de atraso podem ser. 

Lá pelas tantas, em desespero, cortou a fiação elétrica, fazendo cair a luz da rua, desligar o microfone, se calar o violão. No breu, porém, a pulsação continuou: tum-tum, tum-tum.

Como explicar a ela que o que a ensurdecia eram corações?

Táscia Souza

Cem sem

Cem sem

Estudo do Laboratório das Desigualdades Mundiais, divulgado nesta segunda-feira, concluiu que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, entre cem nações analisadas. De acordo com o levantamento, os 10% mais ricos no país, com renda média anual de R$ 253,9 mil, abocanham 58,6% do total, sendo que o 1% mais rico, com renda média anual de cerca de R$ 1,2 milhão, fica com 26,6% dos ganhos nacionais. Enquanto isso, metade da população tem de se contentar com menos de 1% das riquezas do país.

Metade da população mais o José, que não se contenta com nada, porque, sem lenço, sem documento, sem sobrenome, sem certidão, sem registro, sem CPF, sem passaporte, sem chance de voar de avião, sem compreender como um avião voa, sem carteira, sem emprego, sem trabalho, sem salário, sem dinheiro, sem crédito na praça, sem praça onde dormir, sem direitos, sem benefício, sem auxílio, sem bolsa, sem aposentadoria, sem estudo, sem escola, sem oportunidade, sem almoço, sem jantar, sem café, sem leite, sem pão, sem marmita, sem comida alguma, sem dentes, sem sal, sem saco, sem fôlego, sem apêndice, sem baço, sem um pedaço do fígado, sem um rim, sem plano odontológico, sem plano de saúde, sem saúde nos planos, sem saúvas, sem nem saber o que são saúvas, sem ter lido Macunaíma, sem livros, sem papel, sem caneta, sem lápis, sem borracha, sem pena, sem saber ler, sem escrever o próprio nome, sem escrever o nome que seja, sem roupas, sem sapatos, sem chinelos, sem agasalhos, sem coberta, sem lençol, sem colchão, sem transporte, sem destino, sem saber aonde ir, sem casa, sem banheiro, sem papel (nem esse), sem esgoto tratado, sem água encanada, sem água potável, sem sombra, sem água fresca, sem aguardente, sem terra, sem teto, sem chão, sem família, sem parentes, sem filhos, sem mulher, sem pais, sem paz, sem amigos, sem dignidade, sem cabelos, sem memória, sem infância, sem passado, sem futuro, sem perspectiva, sem fé, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, sem nunca ter ouvido falar de Drummond, sem voto, sem voz, sem vez, sem história, sem sentido, não tem nada com que se contentar.

Táscia Souza