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Rogai por vós

Rogai por vós

Em todas as vezes que rezava o “Pai Nosso”, invertia com tanta convicção alguns “nossos” e “vossos” que quando chegava ao “amém” parecia estar reclamando o trono de Deus. Mas não fazia isso por soberba. É que o desejo de fortalecer a fé tirara-lhe o foco do caminho por instrução.

Frequentava as missas da semana e orava todas as noites pelos familiares e amigos próximos. Confiava plenamente no poder de sua conversa com Deus para garantir o bem-estar dos citados. Quando soube da morte repentina de uma tia querida, percebeu que jamais havia pedido por ela. Passou a interceder diariamente pelos filhos dela e parentes mais distantes.

Um dia faleceu a primeira professora, também esquecida nas preces. Não se perdoou. Arranjou um caderno em branco, dedicou-se a cobri-lo com uma lista minuciosa de nomes. Um auxílio à memória. Começou, também, a fazer novenas de doze dias para compensar algum em que a fé pudesse estar enfraquecida. E visitava hospitais para orar segurando as mãos dos enfermos.

Os compromissos aumentavam, o caderno inchava e ele quase não dormia. Estava emagrecendo. Tentou reduzir o fardo, distribuindo fichas com dezenas de nomes às crianças do bairro para que elas pudessem ajudá-lo nas orações. Sabia que elas eram melhor escutadas pelos anjos. Porém, não houve uma que aceitasse. Apelou para o programa de rádio que abençoava água em copos e garrafas. Munido de um aparelho à pilha, partiu para a sede da companhia de abastecimento. De lá, ouvia as palavras do padre e orava abraçado à caixa d`água principal. Na terceira visita foi retirado à força pelos funcionários da empresa e ameaçado por eles para que não voltasse.

Apesar de tudo, sentia-se motivado por saber que todos os contidos em suas preces estavam bem. Mas ainda havia os que escapavam de sua memória cansada e caíam desnecessariamente nas redes da Morte. A solução chegou quando desistiu da fé católica para se juntar a um grupo que se denominava Karbandista. Sabia que com a ajuda dos espíritos, ninguém ficaria sem cobertura. Em três meses de dedicação diária, leu o Livro dos Espíritos e já recebia dois caboclos, um erê, um casal de pretos velhos e um orixá da cura. Era visto constantemente em matas e terrenos baldios realizando trabalhos secretos com comidas e velas. Com a assiduidade e a fé fortalecida acreditou ter, finalmente, vencido a Morte. O carro de som da funerária estava rodando menos e as poucas notas de falecimento no jornal eram para os de idade avançada ou com problemas graves de saúde.

Estava feliz. Mas o coração, cansado de bater por tanta gente, entregou sua alma para prestar contas à Morte. O enterro foi simples para poucos familiares e os amigos do terreiro. Ao final da tarde, quando o corpo já repousava na sepultura, do lado de fora um punho cristão com uma pedra pontiaguda entre os dedos começava a riscar um “M” nervoso no cimento fresco usado para vedar o túmulo. A letra não seria para homenagear um “Mensageiro de Deus” ou um “Missionário da Luz”. Na manhã seguinte, ao juntar com dificuldade as letras mal desenhadas, o que o coveiro conseguiu decifrar foi um “Macumbeiro F.D.P.”.

Marcus Martins

Amor paliativo

Amor paliativo

– Não sei por que os bichos que damos a ele morrem tão rápido. Ele cuida com tanto carinho.

– Ah, Regina, é assim mesmo. Zequinha é um menino muito bom. Atrai muita inveja e os animais morrem para protegê-lo de mau-olhado.

Da sala, de onde ouvia a conversa da vizinha esotérica com a mãe, Zeca partiu desesperado para o quintal. Lá estava o seu zoológico particular, condenado. Por amor, sabia que precisava deixá-lo partir. No mesmo dia à tarde, já havia distribuído os animais entre os vizinhos, excluindo da lista, é claro, os invejosos.

Foram-se os marrecos, as garnizés e as poedeiras, o cágado, os canários, os porquinhos da índia, o hamster, o casal de coelhos, a calopsita e o patinho recém-ganhado. Em cada despedida, um sofrimento. Mas a maior tristeza, a única em que não conseguiu segurar o choro, foi ao entregar o seu amigo mais próximo, o basset pretinho Matias. Ninguém entendia a atitude do menino e ele, fechado que era, também não explicava. Nem os pais fizeram-no voltar atrás.

Com o quintal vazio, silencioso e triste, a agitação do cachorro era o que mais fazia falta. Zequinha pensava nele todos os dias e o ouvia diariamente latindo ao passar pelo seu novo lar a caminho da escola. Pelo menos era um contentamento saber que estava bem. Porém, um dia não o ouviu. Nem no outro. No terceiro sem qualquer sinal, resolveu pular o murinho da casa em busca de informações e encontrou o amigo quieto, deitado num canto, com um machucadinho na cabeça. Quando viu Zequinha, Matias conseguiu agitar o rabo. A patinha também estava ferida. O cachorro emitiu um ruído, o último naquele lugar, e foi levado dali. A casa não sentiu falta.

Depois de curado, Matias parecia estar sempre sorrindo. A felicidade era mesmo grande por ter o amigo de volta e só para ele. Brincavam todos os dias e só se separavam para que Zequinha pudesse ir para a escola. E Zequinha aproveitava e amava seu amigo todos os dias e com o máximo que cabia no coração de um menino de oito anos. Porque Zequinha sabia, mas não podia falar, que cada dia poderia ser o último de Matias.

Marcus Martins