Category Archives: Segunda opinião

Indo

Indo

— E aí, tudo bom?

— Ah, tudo indo né…

— Continue indo então, quem sabe um dia chegue lá.

— Não vai me perguntar por que não está tudo bom?

— Não tenho interesse, estava apenas sendo educado.

Passou a responder sempre que estava tudo bem, mesmo sem estar.

Daniel Furlan

Teatrinho

Teatrinho

Um pequeno espaço na entrada de uma casa antiga é o palco.

No palco: cadeira, bolsa, baú.

No baú: livros, cartões de visita, panfletos, maletinha.

Na maletinha: ingressos, dinheiro, bloco, caneta.

O papel: bilheteira. Personagem principal.

As falas: Boa noite, Tudo bem?, Quinze reais a meia, trinta a inteira, Por nada, Bom espetáculo. Há muito espaço para improviso.

Os figurinos variam tanto quanto os parceiros de cena.

Meia hora de apresentação.

8h35. Fim do espetáculo.

No mesmo horário começa outro, mas é só o complemento.

Louise Nascimento

Paçoca

Paçoca

Ele vivia na rua há quase doze anos. Já tinha perdido suas referências familiares se é que algum dia as tivera. Estava com 38 anos. Cara encovada, pele enrugada, esperança quebrada. Lembrava que havia sido pai, mas só viu a menina uma única vez. Era uma lembrança vaga, que já não valia a pena. Mas apresentava um sorriso no olhar, quando, quase raramente, a memória insistia em lembrar-se da criança. Era o que lhe restava de humanidade. Costumava, nos últimos tempos, ter seu canto debaixo do viaduto Ramirez Gonzalez, na Zona Norte.

Estava acostumado a sobreviver com pouco. Um pedaço de pão, tão duro às vezes que era necessário roê-lo. Para tanto, usava cinco dentes que lhe sobravam na boca e ainda era preciso ter cuidado para não atiçar algum nervo exposto. A dor infernal, quando aparecia, era curada com cachaça, cuja garrafa, nunca vazia, estava sempre colada ao corpo. Havia sempre um trago pras horas de maior fome, quando batia o desespero! Depois o delírio! Para se deitar, um bom papelão retirado do lixo de supermercado. Era como forrava sua cama de cimento.

Sua companhia de todas as horas era uma cadelinha. Paçoca foi o nome escolhido para a parceira. Fiel, a cachorra deixava acesa no interior daquele homem ainda algo de sensibilidade. Ela mantinha o coração dele aquecido da frieza do mundo. Uma vez quiseram levá-lo para um abrigo, mas sem Paçoca. Não aceitavam animais. Preferiu então ficar na rua.

Para ganhar trocado, ele percorria as ruas puxando carrocinha à cata de material que pudesse ser vendido no ferro velho. A maioria das pessoas não sabe que lixo tem valor! Nessa sua busca, percebeu que, há muito, sua presença não era notada. Olhares alheios evitavam cruzar com os dele. Sou o homem invisível!, costumava pensar.

Certo dia, ao passar em frente a uma casa. Surpresa! Uma senhora pediu para que ele esperasse.

— Que tristeza de situação! Deve estar com muita fome! — concluiu a mulher.

Ela entrou como se fosse buscar algo para alimentá-lo. Ele vislumbrou que, depois de muitos dias, iria comer comida de verdade. Sua boca se encheu de água. Ao retornar, a senhora entregou um saco de punhado de ração.

— Sua cachorrinha está muito magra! Você precisa dar a ela o que comer todos os dias! — disse a moradora da casa em tom de advertência.

Apesar da ternura que sentia por Paçoca, naquele instante, ao ter sua fome ignorada, sua existência desinteressada, o homem experimentou, junto com a sensação de barriga vazia, a mais terrível dor de sua invisibilidade. Desta vez, foi ele que quis desviar seu olhar!

Marcos Araújo