Category Archives: Segunda opinião

Fardo

Fardo

O sinal estava fechado quando, através da janela do carro, percebi a pequena figura em uniforme escolar que vinha cambaleando pela calçada. Passo após passo, as pernas da menininha oscilavam sob o peso de uma sacola de tecido desproporcional ao seu tamanho. Pendurada no ombro esquerdo, a bolsa dava ao andar da pequena um aspecto desengonçado que apenas a pouca idade era capaz de tornar adorável. Logo atrás a mãe vinha carregando a mochila e a lancheira, atenta a cada movimento da filha.

A insistência em carregar a sacola que se arrastava pelo chão, em contraponto com o aparente desapego que a criança destinava ao restante do material escolar, demonstrava que ali dentro guardava-se algo especial. Um segredo ou um pequeno tesouro. Curiosa, apertei os olhos e tentei desvendar as palavras bordadas no tecido azul: “Sacola literária”.

Livros, era esse o tesouro que tombava o corpo da menina. Com um movimento involuntário, virei o pescoço e encarei o meu próprio ombro, constantemente dolorido. Percebi no andar da pequena o mesmo andar coxo que eu mesma traçava pela vida. Ora a perna esquerda, ora a direita, sempre se torcendo sob a carga de palavras que eu colhia pelo caminho. Séculos de literatura pesando o corpo.

Mas como aquela criança de andar torto e ainda assim determinado, eu me agarrava à bagagem, cada dia mais pesada, com desejo insaciável. Nos passos vacilantes o prazer de uma nova letra adquirida.

Raíssa Varandas

Hipocondríaca

Hipocondríaca

Era considerada hipocondríaca pela família, porém não entendia o porquê. Afinal, se algo não vai bem no corpo, o melhor é verificar logo o que acontece e acabar com o sofrimento. Era amiga dos médicos, das secretárias deles. Tinha um laboratório favorito devido ao café da manhã que era servido após a coleta de sangue.

Certo dia, recebeu uma carta do plano de saúde — estava gastando demais e agora a modalidade seria a coparticipação. Mas não se abalou. Trabalhava para isso, para empregar seu dinheiro no que fosse necessário. Só não contava com as críticas familiares agora somadas às dos amigos e do marido. Era necessário parar. A frequência aos médicos envergonhava quem a conhecia.

Constrangida, guardou para si suas dores, seus refluxos e suas enxaquecas. Nem o incompreendido hipotireoidismo ficou livre. Não fez mais exames de sangue. As altas taxas de tireoide deviam ser reflexo de sua imaginação. Tanto desfez de si mesma que morreu.

Chegando ao além, foi inquirida:

— O que a trouxe, minha irmã?

— Hipocondria não tratada.

— Curioso… Nunca vimos alguém chegar até aqui por esse motivo.

— Mas assim foi.

— Perfeito. Temos um trabalho para você. Siga até a próxima sala à direita.

— Ótimo! Trabalharei com comunicação, continuando o que fazia lá embaixo?

— Não… Trabalhará em um hospital.

— Ah sim… E em qual setor?

— Diagnóstico.

Paloma Destro

Impaciência 

Impaciência 

Homem vai pagar estacionamento do shopping.

– Crédito ou Débito, senhor?

– Débito, por favor.

Conversando com a colega ao lado, a funcionária não entende.

– Crédito ou Débito, senhor?

– Débito.

A funcionária continua conversando.

– Não precisa da segunda via não.

A funcionária imprime a segunda via e entrega ao cliente.

– Obrigada, senhor.

– Você é burra, surda ou faz de boba? Tudo que eu falei nessa merda até agora você ignorou ou não ouviu. Sua incompetente, quero falar com o gerente. Funcionária ruim igual a você merece ir pra rua.

Não teve coragem de dizer todas essas agressividades. Manteve-as no pensamento. Apenas agradeceu à funcionária e jogou a segunda via fora. Nunca mais pagou o estacionamento com cartão.

Daniel Furlan