Category Archives: Raíssa Varandas

Entre tantas manias, a da escrita prevalece.

Subtexto

Subtexto

Meu estômago revira. Estalo os dedos da mão esquerda. Uma nova revirada no estômago. Estalo os dedos da mão direita. Os lábios se contraem e ao lado de cada um dos cantos da boca surgem linhas finas precoces para os meus 28 anos de idade. As mãos, de dedos violentamente estalados, começam a suar. Seco as palmas na calça. As mãos voltam a suar.

Vou para casa, tomo um banho, lavo todo o suor do corpo. Juro nunca mais voltar ao teatro.

Raíssa Varandas

O dia em que eu viajei com Gregor Samsa

O dia em que eu viajei com Gregor Samsa

Assento ao lado da janela, poltrona treze, meu número de sorte. Não tem como dar errado. Dessa vez nada de ônibus quebrando na estrada, nada de ar-condicionado congelando os ossos ou chiclete colado no cinto de segurança. Coloco fé no treze, nada de engarrafamento ou cheiro de Cheetos nauseando os passageiros. Olho o celular, cinquenta por cento de bateria, é o suficiente. Coloco Caetano para cantar na playlist, apoio o braço no parapeito da janela e admiro a imagem do Rio de Janeiro em um anoitecer de 40 graus.

O movimento do ônibus me embala junto com a música que eu já nem escuto mais, meus olhos fechando e abrindo em uma preguiça gostosa. Que paz, meu Deus, que paz. Fecho os olhos e sinto só um balanço ritmado, abro os olhos e vejo a paisagem da serra de Petrópolis. Fecho os olhos, Caetano. Abro os olhos, o vulto de montanhas azuladas. Fecho os olhos, inspiro. Abro os olhos, o risquinho prateado que a lua crescente traça no céu. Fecho os olhos, expiro. Abro os olhos, antenas.

Tomo um susto. Duas anteninhas saindo do vão formado pelo vidro da janela. Pode ter sido só um sonho. Mantenho os olhos abertos. As antenas começam a se mover na minha direção, percebo o vulto de um corpinho que, no escuro, não consigo identificar. Será que… Não. Mariposa, pode ser uma mariposa. Ou um besouro. Quem sabe até uma formiga que cresceu demais. Qualquer inseto que não aquele. Acendo a lanterninha e o vulto se esconde. É rápido, mas não o suficiente para me impedir de vê-lo. Barata. Filhote ainda, mas irremediavelmente barata.

Grito? Faço um escândalo? Tiro um dos sapatos e caço a maldita pelo ônibus? Finjo de sonsa e ajo como se nada estivesse acontecendo? Caetano agora canta para ninguém, os fones de ouvido apoiados no meu joelho, as minhas costas eretas, tensas. Me afasto alguns centímetros da janela, me armo com um pedaço de papel e fico observando. Se ela aparecer, esmago. Esforço inútil, ela é ligeira, persistente e meus reflexos são lentos. Ela dá as caras e mal eu penso em levantar o braço, já se escondeu novamente. Viajamos assim, lado a lado. Eu, alerta a qualquer aproximação. Ela, turista.

Raíssa Varandas

 

“Sob o lodo há mais gente que suspira”

“Sob o lodo há mais gente que suspira”

Nas bordas do buraco escuro que é a minha garganta, acumula-se a lama que meu fígado expeliu. Viscosa, ela engrossa minha saliva. Minha língua se contraí em uma tentativa inútil de engolir a mistura pastosa e escura que, grudada nas amídalas, aos poucos me sufoca. Bebo um gole d’água. A lama raleia, se espalha pelo restante da boca, gruda nos dentes e volta a engrossar. Tento cuspi-la, mas minha língua prega-se ao céu da boca e é só com grande esforço que eu separo meus lábios quase colados.

Sorte, quase sorte. Se conseguisse cuspir, todos finalmente veriam as substâncias repulsivas que produzo por dentro. Se conseguisse ingerir, aos poucos a lama entupiria minha faringe, esôfago, estômago e intestinos. Eu me tornaria pesada e meus pés afundariam, não no barro, não em um pântano, mas no asfalto duro da cidade que começa a me devorar.

Fico, portanto, com a lama a meio caminho, nem fora, nem dentro. Na boca. De início o gosto é amargo, repulsivo. Com o contato prolongado, porém, as papilas gustativas se acostumam ao gosto acre e, arrisco a dizer, chegam até mesmo a saboreá-lo. Amargo e amado o gosto da derrota.

Raíssa Varandas