Problema de coração

Problema de coração

 

– É o pericárdio – falou apontando para a tela do monitor.

 

No peito, por cima da pele, a gosma gelada era espalhada pelo aparelhinho esquisito que ele usava para olhar dentro dela. “Será que pode ver minha alma?”, perguntou em silêncio, só pela mania de perguntar tudo. Sabia que, se tivesse alma, a pobrezinha teria fugido para o estômago ou para os intestinos à simples menção da constrangedora palavra. Pericárdio.

 

– É a membrana que reveste o coração.

 

E tornou a apontar com uma varinha fina de metal. O gesto a fez encolher-se involuntariamente, como se ele fosse perfurar a frágil película causadora do problema. Ou, quem sabe, arrancar-lhe o coração e assá-lo num espeto.

 

– Você tem um defeito congênito. Seu pericárdio é muito mais resistente do que o normal e isso limita o movimento dos átrios e ventrículos.

 

Ficou com uma súbita vontade de chorar. Que seu coraçãozinho não batia lá muito bem, disso sabia. Mas era seu, ora essa! Chamá-lo de defeituoso e insultá-lo com palavrões como pericárdio, congênito, átrios e ventrículos em nada aliviava a dor que vinha sentindo nos últimos dias.

 

– O incômodo, o cansaço e a dificuldade de respirar são decorrentes dessa restrição, provocada pelo enrijecimento da membrana, ao bombear do sangue para o restante do corpo.

 

Ah, sim. Agora estava tudo explicado. O problema não era congênito coisíssima nenhuma. Quis até contar ao médico, mas ficou com receio de traumatizá-lo pela inutilidade dos muitos anos que ele estudara para dizer bobagens como aquela. Não nascera daquela forma; houve um tempo, na verdade, em que seu coração era suave e batia livremente. O enrijecimento ao qual ele se referia era fruto de uma tentativa de assassinato! Acertaram uma flecha em seu peito e, desde que o arqueiro fora embora, nunca mais foi a mesma.

 

Em vez de contar-lhe a love story, questionou:

 

– Tenho poucos dias, doutor?

 

– Poucos amores, talvez.

 

– Um só é suficiente.

 

Limpou a gosma gelada, vestiu a blusa e saiu do consultório no inspirar e expirar dificultoso de quem sabe que sofre do coração. Na sala de espera, porém, um par de olhos escuros a aguardava com um ansioso sorriso. O ar entrou como um vendaval em seus pulmões. Átrios e ventrículos puseram-se a trabalhar furiosamente felizes enquanto o pericárdio parecia quase derreter.

 

– Acabei de chegar. Fui à sua casa, louco para encontrá-la, mas me disseram que você estava aqui… Tudo bem?

 

Ela conteve a vontade de abraçá-lo, sabendo que teria, sim, muitos dias. Limitou-se a sorrir.

 

– Tudo, foi só um exame de rotina.

 

 

Táscia Souza

 

 

Publicado originalmente em http://hipocondria.blog.terra.com.br, 17 de março de 2008.

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