Dúvida

Dúvida
 

Não se sabe a que horas começa, mas no meio da manhã o volume ultrapassa o chão e chega ao quarto de estudos. A concentração ajuda a abafar até o ponto em que o som cresce mais uma vez. Fazer almoço nem é tão saboroso e as cenas de romance dos filmes trazem batida de funk. O dia todo assim, da indeterminada hora da manhã até o limite do horário de silêncio à noite.

Para muitos não seria um problema, talvez realmente não fosse para quem olhasse desse modo superficial. O detalhe é a trindade que acompanha. O mau gosto pode ser ouvido longe, uma coletânea com sabor de doce de mamão ao molho pardo. Não bastasse ser ruim, é uma só. Sim, a mulher tem um único CD, ou assim parece, com todas as músicas do final das paradas, aquelas que ficaram no fundinho das listas e só saíram para “O melhor da vizinha de baixo”. E o mais importante, o detalhe mais gritante:

Ela canta. E tem fé, pois canta para alcançar os céus, o que implica passar pelo apartamento de cima.

Um dia o vizinho cansou. Já sabia os ritmos, as letras e a ordem das músicas, conhecia o gosto musical dela e, na política de boa vizinhança, não queria criar conflito. Permitiu-se o benefício da dúvida. Tocou no apartamento de baixo e foi recebido com um sorriso.

– Estava na loja outro dia e vi esse CD, lembrei de você, espero que goste.

Ela sorriu encabulada, parece jamais ter ganhado um presente na vida.

– Mas eu já tenho um. – mostrou a capa do conhecido repertório.

– Este é diferente, não é?

– É… – pegou e saltava os olhos de um disco para outro, pausadamente, enquanto o vizinho afastava-se.

No dia seguinte, como nos demais enquanto ele morou ali, não se ouviu música no andar de baixo.

 

Gustavo Burla

 

Publicado originalmente em http://hipocondria.blog.terra.com.br, 9 de fevereiro de 2009.

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