Tudo vai ser diferente

Tudo vai ser diferente

 

Sentia um estado estranho. O branco era tranqüilizante, as luzes o deixavam mais confiante, e a serenidade no rosto do enfermeiro dava toda a certeza. A cirurgia tinha sido um sucesso. Estava imaginando ou alguém havia dito dentro da sala? Não se lembrava. Pensando no que era real ou não, apagou.

 

O quarto era acolhedor. Havia flores. O sol batia nos pés e os aquecia. Há muito tempo não sentia um bem-estar como aquele. Cirurgia sempre é difícil, mas aquela tinha aparência de férias. Iria descansar. Não falaria. Assistiria à televisão. Receberia visitas. Comeria tudo amassadinho. Imaginava-se como um bebê. Foi maravilhoso perceber que voltara a ser um bebê, até que dormiu de novo.

 

O telefone tocara e ele despertou. O som o incomodou, mas por sua sorte, a esposa atendera. Com os olhos meio cerrados, viu um estado de choque em seu rosto. O que poderia ser? Quem estaria ligando? Torceu o pescoço para a direção contrária e fechou os olhos. Entrara, mais uma vez, no mundo dos sonhos.

 

Gritos e sacolejos. “Você me traiu mais uma vez. Estou cansada. Na minha cara!” A dor surgira como um relâmpago e fazia o seu corpo tremer. “Por 12 anos, eu convivo com suas mentiras, com o deboche. Por que você faz isso?” E os tapas por toda a parte ampliavam a sensação de que nada estava bem. Era uma cirurgia de garganta, para retirar as amídalas, mas o corpo todo doía! “Você sempre saiu com elas. Mas sou eu que estou aqui hoje, no seu pior momento. Ela só liga. Por que você me renega as partes boas e me faz passar pelas crises? Só sirvo para os piores momentos?” A garganta ardia, não tinha forças. O gosto de sangue inundava a sua boca. Estava iludido, nada estava bem…

 

O aparelho de pressão que lhe apertava o braço fez com que despertasse. Talvez os seus olhos tenham feito a pergunta que a boca não podia fazer. “O senhor teve uma hemorragia, mas a sorte é que a sua mulher chamou-nos a tempo. Mas agora está tudo bem. Você deve ter alta pela manhã. Trate de dormir pelo resto da madrugada. Você teve sorte. Sua mulher foi uma heroína”, respondeu a enfermeira.

 

Olhou para a esposa que dormia no sofá. Não era uma heroína, era uma santa. De repente, ela abriu os olhos e um sorriso. Foi até ele, e o beijou na testa. “Você vai ficar bem. Eu te amo.”

 

Fechou os olhos. Ela sabia ou não? Foi real ou foi um sonho? Ela havia descoberto a última das traições? Na verdade, ela sempre soube de todas? Não podia perguntar. Não queria saber. Não precisava buscar essa resposta. A partir daquele momento, sentiria um estado estranho sempre que olhasse a mulher e aquele sorriso enigmático de uma… cínica? Santa? Heroína? Ou sofredora?

 

 

José Eduardo Brum

 

 

Publicado originalmente em http://hipocondria.blog.terra.com.br, 1º de setembro de 2008.

Comments are closed.