Uma história de amores

Uma história de amores

 

No dia de todos os santos, completou 75 anos. Sentia-se forte, potente e erétil em todos os sentidos. Tinha construído uma família, mas não convivia com sua ex-esposa (que não poderia ser considerada assim, uma vez que não haviam se separado) e seus dois filhos bem-sucedidos. Escolhera ser solitário, um caçador itinerante, um aproveitador. Mas isso tudo estava prestes a mudar.


Sempre teve um armazém que na verdade poderia ser chamado de bar, pois as rendas vinham das bebidas. Homens de todas as idades freqüentavam aquele buraquinho, onde discutiam de política a mulheres, passando pelo futebol e pelas fofocas da cidade. Os assuntos brotavam, assim como as risadas. E era ele o responsável por grande parte delas.

Contava sobre as mulheres que havia conquistado; sobre os filhos indesejáveis concebidos em outras camas, mas que eram prova de sua virilidade; sobre os amigos engraçados e seus cacoetes que os deixavam em situações embaraçosas; sobre as histórias bizarras que ninguém comprovava, embora todos acreditassem. Ele era a sensação, o espetáculo, a figura central de um show permanente.


Até que um dia, foi se esquivando do mundo, ficando alheio ao que estava ao redor. Os amigos gritavam para chamar sua atenção, já que não escutava o que lhe diziam. Não percebeu de início, mas, aos poucos, via os amigos cochicharem na sua frente. Foi ficando impaciente, e explodiu. Brigou com todos. Perdera a clientela que fora beber o dinheiro num bar mais moderno, com funk para os ouvidos e mulheres de shortinho para os olhos.


Nas conquistas amorosas, não correspondia, pois não escutava o que elas falavam. O galanteador não usava mais a lábia, pois não sabia o que dizer. Sempre foi um pé-de-valsa, mas perdera o rebolado, pois não sentia o ritmo. O mundo foi se apagando, apesar das memórias estarem vivas e intensas.


Numa cidade pequena, onde tudo é difícil, teve de arriar as portas e fechar o comércio que já tinha mais de 50 anos. Quando trancou pela última vez o estabelecimento, soltou uma lágrima, aquela que deveria ter libertado ao abandonar a mulher. Sempre abandonara as pessoas, agora estava sendo abandonado.


Teve de voltar para os braços da esposa. As rugas tinham prosperado no rosto dela e as marcas do tempo, aprofundado. No entanto, precisava se sentir homem de novo, mas ela não deixou. Era orgulhosa e turrona. Ele poderia ter esquecido a humilhação perante a sociedade, ela não. A convivência foi difícil, porque só se comunicavam por meio dos gritos. Para a esposa, era a forma de expirar a dor. Para ele, a única maneira de escutar.


Em menos de dois meses, foi encontrado deitado no chão com sangue saindo dos ouvidos. De acordo com o médico, uma infecção estava, há meses, comprometendo a audição. E ninguém percebeu. Por outro lado, todo mundo compareceu ao velório e chorou. A duração foi algo inédito: mais de dois dias. Todos queriam se despedir. A única que não esteve no sepultamento foi a mulher. Há quase vinte anos tinha se despedido, quando descobrira que ele a traíra com a comadre dela.


Anos depois, ele ganhou uma praça com seu nome, embora ninguém o visitasse no cemitério, a não ser ela, que ia feliz, porque sempre torcera para que ele se acalmasse num lugar e descansasse. Só a morte pôde realizar o seu desejo. Rezava para fazer-lhe companhia, para ser enterrada em cima dele, mas não foi atendida. Um irmão dele morrera três semanas antes dela e tomara o seu lugar. Ela teve de se contentar em descansar ao lado dele, como nunca acontecera durante os anos escassos de casamento.

 

 

José Eduardo Brum

 

 

Publicado originalmente em http://hipocondria.blog.terra.com.br, 3 de novembro de 2008.

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