Gestação

Gestação

Os enjoos matinais foram o primeiro sinal. A náusea repentina que lhe contraía a garganta em repulsa ao cheiro do café. Pouco depois vieram os desejos. Sua fome ansiava por misturas de gostos que antes pareciam peculiares ao metódico paladar. Em um mesmo prato degustava Rimbaud, bulas de remédio, pichações nos muros da cidade e poemas impressos em papel de pão. Mário e Oswald de Andrade acompanhados de um livro de receitas de carnes exóticas. Generosas porções de Shakespeare refogado com as notícias de jornal e os filmes em cartaz. Os sinais, diante de olhos bem treinados, já anunciavam a nova chegada, mas para ela a certeza só veio mesmo quando sentiu que algo crescia dentro de si.

No começo era apenas uma ideia, minúscula, do tamanho de uma letra isolada em líquido amniótico. Em poucas semanas, porém, da ideia que era quase letra formou-se uma palavra completa. Era curta ainda, mas já carregava as potências da linguagem. O apetite lascivo aumentava diariamente e ela se fartava com os grandes autores, com os autores nem tão grandes assim, com a voz do piano e da guitarra, com as piadas online e os anúncios nas revistas. Tudo que era texto, tudo que era língua, som ou cor ela tragava para dentro de si. Depois vomitava, porque a gula fora intensa.

Entre o comer e o vomitar, a palavra dentro dela, que antes era só ideia, deu origem a outra. E das duas palavras unidas, alinhavadas com fio bambo, outras tantas brotaram costurando-se em possibilidades. A ideia embrionária multiplicou-se em tecido de letras preparando-se para o parto: surgiu a escrita no papel. Mas a gestação de um texto é sempre infinita, ainda que dure um dia ou nove meses, ela se perpetua pela vida.

Raíssa Varandas

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