“Sob o lodo há mais gente que suspira”

“Sob o lodo há mais gente que suspira”

Nas bordas do buraco escuro que é a minha garganta, acumula-se a lama que meu fígado expeliu. Viscosa, ela engrossa minha saliva. Minha língua se contraí em uma tentativa inútil de engolir a mistura pastosa e escura que, grudada nas amídalas, aos poucos me sufoca. Bebo um gole d’água. A lama raleia, se espalha pelo restante da boca, gruda nos dentes e volta a engrossar. Tento cuspi-la, mas minha língua prega-se ao céu da boca e é só com grande esforço que eu separo meus lábios quase colados.

Sorte, quase sorte. Se conseguisse cuspir, todos finalmente veriam as substâncias repulsivas que produzo por dentro. Se conseguisse ingerir, aos poucos a lama entupiria minha faringe, esôfago, estômago e intestinos. Eu me tornaria pesada e meus pés afundariam, não no barro, não em um pântano, mas no asfalto duro da cidade que começa a me devorar.

Fico, portanto, com a lama a meio caminho, nem fora, nem dentro. Na boca. De início o gosto é amargo, repulsivo. Com o contato prolongado, porém, as papilas gustativas se acostumam ao gosto acre e, arrisco a dizer, chegam até mesmo a saboreá-lo. Amargo e amado o gosto da derrota.

Raíssa Varandas

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