Pássaro sem pouso

Pássaro sem pouso

O repórter deixou a redação com a incumbência de trazer para o jornal uma reportagem sobre moradores de rua.  O editor havia recebido uma denúncia. Na rua tal, num bairro de classe média, os residentes não sabiam mais o que fazer para afastar aqueles novos vizinhos tão indigestos. 

Pardos, maltrapilhos, mal cheirosos, às vezes desbocados, eles emporcalhavam a via pública. Maculavam o endereço nobre. Uma mulher, que não suportava mais abrir a janela e se deparar com barracas de papelão, vasilhames espalhados e cobertores pendurados em muros alheios, já havia batido de porta em porta, reivindicando a cada morador da rua (estes sim eram de verdade os donos do lugar e não os outros, os moradores de rua) que não dessem o que comer àquele bando de desocupados (na verdade ela os chamava de vagabundos, mas, para manter a classe diante dos vizinhos, achava chique usar eufemismos). 

“Sem comida pra eles é claro que vão embora”, raciocinava a mulher, que, de tão seca, esquecera que solidariedade é um compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas às outras e cada uma delas a todas. 

Ao chegar ao local, o jornalista teve receio. Seria hostilizado pelos moradores de rua? Escondeu seu relógio e celular no bolso da calça. Pensou em abordar os mendigos, oferecendo dinheiro para afastar qualquer possibilidade de ataque. Sentiu vergonha de pensar assim. “Cadê minha humanidade?”, advertiu-se. 

Mas não foi preciso tática  especial. O gelo foi quebrado por meio de um assovio. Do banco da pracinha, um mendigo, de sorriso quase vazio, chamou o repórter. Contou que, depois de receber o que comer, solidariamente, de alguns moradores, arrumava seus pertences, que não eram muitos, e passava o dia na praça. Quando estava muito frio ou chovendo, ele se mudava para debaixo de uma marquise. 

Ele já não se lembrava mais há quantos anos vivia nas ruas. A memória era falha, mas disse que viera da roça. “Minha família nunca teve casa própria. Éramos muito pobres. Por isso, não tenho para onde voltar”, relatou. Ele ainda contou que já estivera em abrigos da Prefeitura, mas não gostou. “Eles proíbem a gente de passear e eu adoro passear”, ressaltou, lembrando que não era escravo das horas. “Mas um pássaro sem pouso e desapegado”. O jornalista voltou ao jornal e, no lugar da reportagem, entregou ao seu editor uma poesia sobre a liberdade!

Marcos Araújo

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