Ao pó

Ao pó

Estou manchado de sangue. Há uma mancha azul-esverdeada no pulso, mancha das veias sob a pele muito branca. Há outra formada pelos vasos vermelhos que se alastram pelo branco dos meus olhos. E há aquelas que cobrem o meu rosto, uma de cada lado, denunciando que estou constrangido. Ou inseguro. Ou nervoso. Como agora. Viro mais um copo de rum — acho que já deve ser o quarto, se contei bem — para tomar coragem. Só então enfio o celular na gaveta, ao lado do pacote de pó, e vou atendê-la no balcão.

O pacote é uma das causas do constrangimento. E da insegurança. E do nervosismo. E do rum. Já estava ali quando cheguei, mas essa é só a minha versão. A dela pode ser a de que me viu guardar também o invólucro plástico. Pode ser a de que, se o celular ao lado é meu, o pó também é. Pode ser a de que fui denunciado pelo rubor da face que não consigo conter. Pode ser a de que, se estou manchado de sangue nos pulsos, nos olhos e no rosto, há mancha de sangue também em minhas mãos.

Nada disso, no entanto, parece passar pela cabeça dela quando sorri. Você é o, né?, pergunta em inocente desmemória, meu nome sumindo em seus lábios, como algo que não interessa. Sou amiga do (tampouco esse nome importa) e ele me passou seu número, mas acho que seu celular está com problema. Tentei ligar e não deu. (Era ela?) Mas como estava aqui perto mesmo, arrisquei. Ele me falou do seu pó. Disse que era o melhor da região. Vim experimentar.

Encaro-a com espanto ao perceber que ela não se lembra. Não da mancha azul-esverdeada no meu pulso na qual ela costumava brincar de encostar o polegar para calcular meus batimentos. Nem dos vasos vermelhos nos meus olhos, que ela costumava analisar, avisando-me quando as pupilas estavam dilatadas. Sequer das bochechas que sempre se avermelharam só de olhar para ela. Então, só assinto e vou preparar seu café.

Táscia Souza

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