Os meus olhos

Os meus olhos

Querido amor desencontrado,

soube há pouco, por um sonho, que você teve um filho. A imagem veio assim, num repente: você — o você que nunca vi, mas você — segurando o pequeno bebê nos braços, assombrado porque, embora ninguém mais se dê conta ainda, ele parece que terá seus olhos, como já tem seu jeito de franzir os lábios quando se entristece, um jeito que eu admiraria desde o primeiro dia, do outro lado da mesa em que sentaríamos para tomar o primeiro café se tivéssemos nos conhecido. Em março do próximo ano, quando completar dois anos do nosso desencontro, seu garotinho já terá seis meses e será capaz de levar sozinho um pedaço de banana à boca, apesar de esmagar boa parte da fruta com os dedinhos lambrecados e afoitos da descoberta. Por enquanto, porém, ele só chora, mama, caga (esse verbo horrível), dorme, enquanto o mundo lá fora volta a viver aos poucos. Nós não. Você, trancado aí com seu bebê, protegendo-o de todos os vírus, ainda que não de todas as dores; eu de cá, ainda aferrada a higienizar itens inúteis e a mascarar todos os dias uma solidão que já não deveria ter lugar mas encontra. 

Enfim: soube por um sonho que você teve um filho e pensei naquele repente que, se tivéssemos nos conhecido como estava previsto no dia em que a cidade inteira (e o estado, o país, as fronteiras, o planeta, o afeto) se fechou, talvez o bebê agora em seus braços também pudesse ser meu.

Mas então ele teria os meus olhos, e não os seus. 

Táscia Souza

Comments are closed.