O sacrifício no espetáculo

O sacrifício no espetáculo

 

Era um pandemônio, gente correndo de um lado para outro. Pessoas sem roupas, uma fumaça escura e azeda que incomodava. Muito pó no ar, quem não estava acostumado sentia a ardência. Estava muito quente. Umas riam de nervoso, outras gritavam. Nesse tumulto, nesse frenesi, em frente a um espelho…

– Ela está branca, você não está vendo?

– Você acha que conhece mais minha filha do que eu?

– Eu só acho que ela não tem condições de entrar, está pálida.

– Ela vai e pronto. Não perderá isso por nada.

A produtora se afastou com passadas fortes e desejou que a mãe morresse.

À medida que o tempo se aproximava, a mãe ficava apreensiva. Estava tensa. Já a filha de sete anos sentia-se enjoada, mas sabia que não podia estragar os sonhos maternos. De jeito nenhum! Por isso, sofria calada. A dor era intensa, cortante. Se falasse com a mãe, ela diria que era nervosismo. É, deveria ser…

– Brilhe, minha filha. Cuidado com o gingado. Sorria daquele jeito, sem mostrar os dentes de baixo. Você está linda.

Despediram-se. A menina começou a arfar baixo, a sentir tremores. Os flashes que já chegavam àquele ponto do camarim estavam deixando-a tonta. Gelou, não queria entrar, desejava as suas cobertas, o quarto quente.

Pisou na passarela. Sem forças. Foi andando lentamente, de qualquer maneira. Não se importava. Queria acabar logo com aquilo. A mãe, horrorizada, foi se aproximando da entrada. Queria fazer um sinal, mandar a filha se endireitar, ficar com mais compostura. Estava tudo estragado.

De repente a menina parou no meio da passarela. Os olhos pareciam que iam sair das órbitas. Olhou para um lado, depois para o outro. A platéia prendeu a respiração. O que era aquilo? Sem mais nem menos, soltou dois jatos de sangue pela boca. Um “ah” de surpresa saiu em conjunto, no mesmo instante em que todos se levantavam. A menina ajoelhou-se.

Mais rápida que uma bala, a mãe entrou na passarela. Sabia que era o seu momento de brilhar e que a filha terminaria aquele desfile. Ela a pegou pelos braços (os olhos da menina já estavam fechados), foi até o final. Parou para as fotos, sorriu, fez cara de séria e compenetrada, e ainda ofereceu a filha em sacrifício.

Voltou em glória, ovacionada, com muitos aplausos. Tinha sido lindo, fabuloso, espetacular. Foi a sensação do desfile. Todo mundo só comentava aquela cena brilhante. Ganhou as páginas de todas as revistas pela inovação em aliar o espetáculo cênico ao de moda.

Com o glamour desse episódio, a mãe ficou famosa, teve oportunidades no mundo das passarelas. Tornou-se importante, comandou desfiles grandiosos em Paris, Milão e Nova Iorque. Era uma das mulheres mais requisitadas e respeitadas da moda. Tinha como seu braço direito uma ex-produtora autoritária e intrometida. Ninguém sabia a razão de mantê-la em sua equipe. Suspeitava-se de que ela sabia algum segredo de bastidor.

Sim, sabia. A ex-produtora era a única que viu a mãe jogando a filha morta no lixão da cidade.

 

José Eduardo Brum

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