De costas pro crime

De costas pro crime

 

Tava lá o corpo estendido no chão, parecendo música do Aldir Blanc. Só não tinha cara de gol porque ninguém quis abrir mão da página de esporte – era a mais disputada àquela hora da manhã. Zé do Bar sugeriu o segundo caderno, pelo qual pouca gente se interessava normalmente. A idéia, porém, foi logo descartada por Chico Sambeiro: aquela edição era justo a que tinha a matéria com o pessoal do pagode da esquina, entrevista com Mestre da Percussão e tudo – o homem tinha que morrer logo no dia em que o samba ganhava as páginas, santo Deus! Como a foto dos músicos também enfeitava a capa, Margarete, a mulher do tocador de cuíca, bateu o pé que ia botar na moldura. O delegado Anísio foi logo pra página de polícia (o tira gostava de exibir seus feitos), mas aí tinha a notícia da prisão do seu Bené… Tá bom que o velho assaltou o consultório do doutor Sampaio, mas a coitada da dona Glorinha não merecia que lhe colocassem o retrato do esposo algemado pra cobrir defunto. João da Feira aventou a de economia, da qual nem ele, que era comerciante de prestígio, entendia lhufas. Mas dessa vez foi Mariana que argumentou que sexta-feira era dia da coluna de emprego e sabe como é, né?, tinha muito nego precisado na vizinhança. Por fim, ficaram com a que sobrou mesmo e emprestaram ao morto a cara do presidente, sorriso largo, dando um abraço apertado no senador que caçava marajás. Nenhum deles considerou que o pobre diabo pudesse ficar ofendido. Quem é que se importa com política, afinal de contas?

 

Táscia Souza

3 Responses

  1. De que adianta se importar com política afinal?
    (se até o presidente não liga e insiste em dizer que não votou no senador…)

    Só nós mesmos, eternos sonhadores…