“Quanto a mim o amor passou”

“Quanto a mim o amor passou”

Acordou uma manhã e tinha perdido sua poesia. De repente, o pedaço de céu claro que entrava pela janela do quarto não era mais o reflexo invejoso e pálido dos olhos de Inês, mas apenas moléculas de ar colidindo com a luz do sol e quebrando o espectro, dispersando o azul. A própria Inês, tão suave dormindo ao seu lado, não era mais a encarnação de Eurídice diante de sua lira encantada, e sim nada além do que uma mulher jovem deitada perto de um homem, a respiração regular como a de qualquer outro animal em estado de sonolência. As mãos tenras e brancas da esposa, unidas sob o rosto outrora bonito, não eram mais plumas macias que pareciam flutuar a qualquer gesto, mas somente um conjunto de pequenos ossos e articulações cobertos de pele alva. A pele dela, aliás, antes feita do mais fino cetim, era agora só um imenso órgão a revestir todo o seu corpo, célula por célula.

Ficou encarando-a, enojado, incapaz de transformar em versos os resquícios das antigas aulas de ciência que nem sabia estarem presos em sua memória. Ao seu lado Inês espreguiçou-se, seus lábios distenderam-se no que um dia antes ele ainda pensava ser um raio de luz, e ela cravou nele seus imensos olhos azuis, reflexo invejoso e pálido do pedaço de céu claro que entrava pela janela.

Pediu o divórcio.

Táscia Souza

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