Category Archives: Hupokhondriakós

Aquarela

Aquarela

para Moreno, de aniversário

A folhas com desenhos para colorir se misturavam às mãos na mesinha redonda perto do chão, à altura dos artistas. Da caixa de canetinhas e gizes de cera coloridos, o pequenininho escolheu a dedinho o crayon marrom. Girou a mão com o bastãozinho, ameaçou apontar com os dentes e suavemente tentou preencher os contornos do sol.

A idosa ao lado, cuja idade talvez requisesse mais de uma mão, lançou ao ver os primeiros círculos:

– O sol é amarelo.

O baixinho parou no mesmo instante. Com paciência e sem vocabulário, lançou o olhar repleto de argumento para que o pai verbalizasse:

– Esse é moreno.

Gustavo Burla

Casa de chá

Casa de chá

Viu que tinha demanda e montou uma pequena mercearia especializada em chás. Claro que havia os exóticos, como o de manteiga do Tibete ou o chá amarelo chinês, conhecido como um dos mais raros do mundo. O que saía mais, no entanto, eram mesmo os mais comuns: o de panela, para quem não tinha chaleira; o de casa nova, para quem quer experimentar uma mudança de sabor; o revelação, cuja cor era uma surpresa reservada à infusão; o de bebê, geralmente feito a partir de partes mais tenras e servido latte; o de fralda, limpa ou suja, ao gosto do freguês.

Táscia Souza

Contar motoquinhas

Contar motoquinhas

Começou a combater a insônia deixando de lado o celular duas horas antes de dormir. Depois o computador e por fim a televisão. E a leitura. Comprou blackout para isolar as luzes da cidade, tampão de olho e de ouvido, bebia vinho (uma taça, duas, a garrafa) toda noite e nada. Desmaiava e era acordado no meio da madrugada. Rolava na cama, passeava pela casa e um dia sentou-se na sacada para contar quantas motos passavam lá embaixo, na rua. Dormiu.

Os anos de terapia foram taxativos o tempo todo: mude-se para um bairro mais quieto, para o campo. Mudou-se. Mudou de casa, não de hábitos, inclusive o de acordar no meio da madrugada. Sem motos para contar, via o sol nascer.

Gustavo Burla