Outras crianças tinham um cachorro. Ou um gatinho. O menino tinha uma lágrima. Era fiel companheira e estava sempre ao seu lado, ali à vista, no cantinho externo do olho direito, pronta para (es)correr e protegê-lo se preciso fosse. Não era o latido de um cão o que lhe anunciava o perigo, mas ela, que parecia crescer, eriçada, quando ele se sentia assustado; ou com dor; ou simplesmente um pouco triste. E se às vezes deixava que a levassem para passear, envolta em gaze ou algodão ou mesmo acarinhada na ponta do dedo de alguém, ela voltava depois, leal, espontânea, pronta para cair se ele um dia caísse também.
No caderno de receitas, ela tinha o hábito de anotar o tempo de cosimento dos pratos, e a grafia estava certa. Meia hora para alinhavar os ingredientes. Uma hora e meia para drapear massas. Vinte minutos para embeber molhos, reduzindo-os feito tecido, para que uma pitada de sal se encaixasse com perfeição num dente de alho ou num grão já moído de pimenta-caiena. Quinze minutos para forrar louças. Na gaveta sob a pia, junto com talheres e conchas e escumadeiras, havia até uma agulha e um rolo de barbante, para dar ponto (literalmente mesmo) a cada preparo.
Já no quarto de costura, ela cozia, a máquina vermelha que fora da avó vertendo não roupas, mas temperos destinados a dar sabor ao próprio corpo.
soube há pouco, por um sonho, que você teve um filho. A imagem veio assim, num repente: você — o você que nunca vi, mas você — segurando o pequeno bebê nos braços, assombrado porque, embora ninguém mais se dê conta ainda, ele parece que terá seus olhos, como já tem seu jeito de franzir os lábios quando se entristece, um jeito que eu admiraria desde o primeiro dia, do outro lado da mesa em que sentaríamos para tomar o primeiro café se tivéssemos nos conhecido. Em março do próximo ano, quando completar dois anos do nosso desencontro, seu garotinho já terá seis meses e será capaz de levar sozinho um pedaço de banana à boca, apesar de esmagar boa parte da fruta com os dedinhos lambrecados e afoitos da descoberta. Por enquanto, porém, ele só chora, mama, caga (esse verbo horrível), dorme, enquanto o mundo lá fora volta a viver aos poucos. Nós não. Você, trancado aí com seu bebê, protegendo-o de todos os vírus, ainda que não de todas as dores; eu de cá, ainda aferrada a higienizar itens inúteis e a mascarar todos os dias uma solidão que já não deveria ter lugar mas encontra.
Enfim: soube por um sonho que você teve um filho e pensei naquele repente que, se tivéssemos nos conhecido como estava previsto no dia em que a cidade inteira (e o estado, o país, as fronteiras, o planeta, o afeto) se fechou, talvez o bebê agora em seus braços também pudesse ser meu.