Category Archives: Táscia Souza

Com todos os ites que se possam imaginar.

Estudo aplicado sobre os usos modais do verbo dar

Estudo aplicado sobre os usos modais do verbo dar

Tudo o que posso dar é minha palavra. Ou talvez sejam palavras, essas que dei pra anotar a esmo e pras quais dei de inventar de dar outros sentidos quando todo sentido já se (per)deu. Meu sono demora a dar as caras pensando que loucura é essa que deu no mundo, pensando que nó é esse que dá na cabeça, pensando nessa merda toda que tem se dado com a gente, pensando que bicho me dá de meter a palavra merda no meio de um estudo linguístico sério, mas perdão é a língua inteira que tenho pra dar. É o mesmo repetitivo pensamento que dá de frente com tudo de ruim que deu no noticiário enquanto a previsão do tempo promete mais uma vez, apesar do frio, que vai dar sol. É o mesmo repetitivo pensamento que dá voltas pelas outras voltas que a gente dava pelas ruas, no café que só dava pra (não) tomar bem rápido nos pequenos intervalos dados pelo tempo, nas pequenas pausas dadas pela vida, essa vida cá-dentro-lá-fora que nem sempre parece dar pra viver, mas que a gente segue vivendo mesmo assim. É o mesmo repetitivo pensamento que dá um curto circuito dentro da gente, que faísca nos sorrisos que poderíamos ter dado e que não demos, que cintila nos abraços que poderíamos ter dado e que não demos, que se incendeia nas palavras que poderiam ter sido dadas e que não foram durante cada conversa que (nos) dava voltas — e elas ainda dão —, sempre dando em nada e nunca dando de fato aonde deveriam dar. A não ser é claro na única confissão que dá pra fazer: de que às vezes dá uma saudade danada, de que às vezes dá um desespero tremendo, de que todo dia a única notícia que se quer dada pelos jornais é de que já dá pra gente se ver de novo. Se der. Quando der.

Táscia Souza

Positivo

Positivo

Quando viu as duas linhas cor de rosa de materializarem no visor da tira branca, sabia que o resultado era positivo para muitas questões: dores de cabeça, lapsos de memória, desconfortos gástricos, dores lombares e na bacia, alterações na pigmentação e textura da pele, hipersensibilidade, crises de ansiedade, medo, paranoia. Já podia praticamente sentir cada um desses sintomas chegando, com toda certeza, simplesmente enquanto olhava as duas linhas cor de rosa materializadas na tira branca.

(A bula do exame dizia, além disso, que havia 99% de possibilidade de o resultado ser positivo também para gravidez, mas para esse sintoma específico era melhor tirar a prova com o betagacegê.) 

Táscia Souza

Suspiros

Suspiros

Quando o sono chegava, mesmo sem avisar antes, tinha aquele instante de cochilo que era o melhor momento do dia. Mais que isso. Ou menos que isso: não era o cochilo, mas o instante que precede o cochilo e sucede a vigília. O átimo da respiração mais profunda que ainda não acordou quem vai porque não sabe que foi. E quando respira — pelo volume, som ou relaxamento —, volta. O melhor momento do dia era o instante parado no ar.

Aprendeu a sentir, esperando sorrateiro, desdenhando quase, a chegada do acontecimento. O coração oscilava ente a sístole e a diástole, com muita força e pouco tempo, uma pausa a bombear. Vinha — ou ia — na leitura, no filme, na aula, com o corpo esticado no sofá e ouvindo música. Na cama, desde cedo nos feriados. Até no banho, mas arriscado insistir.

Insistia, o dia todo insistia, onde pudesse e estivesse insistia, cada vez mais tinha aqueles suspiros ou a suspensão de tudo. Vinha de um momento e iniciava outro. Sucessivamente por todos os tempos do mundo, em eternas pequenas mortes.

Gustavo Burla