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Com todos os ites que se possam imaginar.

Receita de bolo no estômago

Receita de bolo no estômago

Ingredientes:

  • 3 xícaras (chá) de ansiedade
  • 200 g de apreensão em temperatura ambiente
  • 2 xícaras (chá) de sensação de solidão
  • 4 dúvidas (separe as claras)
  • 1 xícara (chá) de leite derramado
  • 1 lata chutada com água, sal e tudo
  • 1 pitada de drama
  • 1 colher (sopa) de paranoia para fermentar

Modo de preparo:

  • Preaqueça o cérebro a 210º C (temperatura média), até os pensamentos começarem a borbulhar.
  • Unte duas forminhas redondas, com o diâmetro de seus olhos, espalhando com os dedos uma camada fina e uniforme de água e sal. 
  • Corte um disco de papel de Kleenex e pressione com os dedos para colar o papel na superfície untada. 
  • Na boca, misture a ansiedade com o drama. Reserve, sem falar nada. 
  • No peito, bata a apreensão até que triplique de volume (se conseguir, acelere os batimentos cardíacos; isso deixará a massa mais firme). Aumente mais a velocidade das batidas e adicione a sensação de solidão aos poucos. Bata por cerca de 5 minutos até seu rosto ficar com uma aparência pálida. 
  • Junte as dúvidas, uma a uma, batendo os dentes de nervoso para misturar entre cada adição. Diminua a velocidade do raciocínio lógico e adicione a mistura reservada de apreensão e drama, alternando com o leite derramado. A cada adição, pense o suficiente apenas para misturar, mas sem chegar a conclusões demais. Por último, misture a paranoia delicadamente para fermentar. 
  • Engula a massa com dificuldade, sentindo-a apertar a garganta. Deixe o embrulho descer até o estômago preaquecido e asse, em gastrite, por 30 minutos. Diminua a temperatura para 180º C (temperatura baixa) e deixe assar por mais 50 minutos (é importante diminuir a temperatura da gastrite para evitar que se crie uma úlcera por fora e não cozinhe no centro). 
  • Sirva quente. 

Táscia Souza

Criação

Criação

O escritor observa o pombo. O pombo e a criança. Observo o pombo e a criança pelos olhos do escritor. O parque parece, pelo que me chega, infestado de ambos, como costumam ser os parques. O escritor, felizmente, não é desses que alimentam os pombos. Veste-se como o clichê de um — o terno amarrotado, o chapéu de feltro — e tem até o mesmo andar meio curvado, que usou para chegar ao banco escolhido, porque anos de escrita pesam-lhe os ombros. Mas não é. O saco de papel pardo que tem nas mãos, ao menos, não é de grãos de milho amarelo, mas de canetas Bic azuis, porque ele recém-cismou de escrever à mão. Longe das telas. No parque. Observando a vida. A vida que quer me dar.

Por enquanto tenho traços da menina que brinca de assustar os pombos. Eu deveria andar cambaleante como ela, as pernas ainda um pouco abertas. Deveria tatear o texto do escritor com mãozinhas curiosas. Deveria enxergá-lo com a mesma inocência com que ela olha para ele, ali no banco, e aponta-o, com sílabas trocadas, chamando-o de Papai Noel. Mas, a despeito do estoque de Bics e de esforços, o escritor não consegue me fazer ter os mesmos pensamentos cambaleantes da menina. Nem o ânimo suficiente para, como ela, assustar o pombo que, sem receio, alça voo e caga bem em cima da minha cabeça. O escritor então arranca minha história da caderneta e atira a página emporcalhada na lixeira.

Táscia Souza