Category Archives: Táscia Souza

Com todos os ites que se possam imaginar.

Cinzas

Cinzas

A essa altura todo mundo perdeu alguma coisa. Ou alguém. Nestes seis meses que se completam daqui a três dias, uma amiga de infância perdeu o ar numa manhã de sábado e, umas duas semanas depois, um pedaço do pulmão esquerdo, no qual fibroses remanescentes reduziram consideravelmente a capacidade respiratória. Obviamente, como não sou médica, não sei se é esse o diagnóstico exato, mas perdi o pudor de emitir meu próprio laudo a partir da notícia que me chegou pelas redes sociais, essas que também perderam os filtros para todos os assuntos e opiniões, inclusive as minhas. Pelas mesmas redes soube de conhecidos queridos que perderam seus próprios conhecidos queridos cujos corpos, mesmo passando pela UTI, não reagiram com toda a intensidade que o tratamento exigia. Unidade, até aqui, só na perda. O garçom do restaurante onde eu almoçava quase todos os dias, perto do trabalho, perdeu uma parte do salário, depois a expectativa de revogarem a suspensão de seu contrato, e depois, definitivamente, o emprego. Minha vizinha de cima perdeu a paciência junto com uma bola de soprar, dessas de aniversário, cheia de água, que caiu de sua sacada e estourou bem no meio da área externa do apartamento do quinto andar, onde outros vizinhos recebiam gente para uma festinha. Do sofá, vi o balão colorido passar feito uma bomba e logo o perdi de vista, só restando dele os gritos que provocou. Dia desses, o atendente da farmácia da esquina onde eu comprava quinzenalmente os indispensáveis comprimidos para dor de cabeça, no susto de me ver entrar de repente, perdeu a máscara que estava pendurada na orelha. E, com pesar, mais meu do que dele, também perdeu a cliente. Desde então, perco alguns minutos a mais indo a outra drogaria, que fica dois quarteirões mais distante. A moça do caixa da padaria mais perto perdeu as luvas cirúrgicas que fazia questão de usar desde o início de tudo. Ou talvez, o que é mais provável, alguém as tenha perdido por ela, porque as pontas encardidas dos dedos de látex — como você deve ter notado se tiver passado por lá, sem resistir a um sonho, em qualquer dos dias em que foi obrigado a deixar o home office e ir ao escritório resolver pendências — estavam num estado bem deprimente de se ver. Um amigo perdeu a lente do telescópio no alto do morro onde subiu para observar o rastro de um cometa. Mães ianomâmis perderam seus bebês e o direito de prestar-lhes os ritos fúnebres. Sei de muita gente que tem perdido o equilíbrio, o humor, a esperança, a sanidade. Outro tanto não quis perder o pôr-do-sol na praia no feriado — e passei por todos os outros estágios do luto, com especial destaque para a negação (que também poderia ser chamada de incredulidade), até chegar à aceitação de que é compreensível diante das perdas generalizadas do equilíbrio, do humor, da esperança e da sanidade —, mas agora resta torcer para que nem eles nem outros percam futuros pores-de-sóis por causa disso. Leio na internet que o Pantanal perdeu mais de 12% de sua vida nas chamas e me perco em silêncio lamentando que nem lá nem aqui essa parece ser toda a vida que será perdida. Você, quase seis meses atrás, perdeu a chegada do meu táxi na frente do seu trabalho, uma ferida na testa provocada pela porta do carro, um band-aid que eu não poderia mesmo te comprar e meu acesso de tosse diante do pedido de casamento que você tampouco pôde me fazer pouco tempo depois. Já eu, querido amor desencontrado, há quase seis meses, naquela mesma tarde em que a gente não se conheceu, perdi você. 

Táscia Souza

32 dentes

32 dentes

Passo a língua devagar pelos dentes e… ah, merda, um bráquete do meu aparelho se soltou. Parece quieto no canto dele, que é sobre o quarto dente superior de trás para a frente do lado esquerdo da minha boca (sim, específico nesse tanto), com a diferença de que não está exatamente quieto, mas se move ligeiramente ao contato da minha língua. Ou da ponta do indicador que levo até lá para confirmar o desastre. 

Não é grande coisa. Tudo bem que estive no consultório da dentista há menos de duas semanas e não pretendia voltar até o meio do próximo mês, mas é só um bráquete. E é no quarto dente superior de trás para a frente etc., o que não compromete as correções que mais precisam ser feitas, bem no meio do sorriso, onde os dentes parecem não se mover para o lugar certo de jeito nenhum. Mas… ah, merda! A língua sente outros dois bráquetes balançarem, dessa vez na arcada inferior, como se fizessem uma pequena dança de provocação. Levo o dedo até lá e, plaft, uma pequena coisinha branca pula e cai bem no meio da minha mão.

Ah… merda, merda, merda! A coisinha branca não é um bráquete de safira ultracaro do meu aparelho estético, mas um dente. Um dente que desde antes de eu completar dez anos chama-se permanente e que, portanto, deveria respeitar essa premissa e permanecer intacto no lugar do outro menorzinho que caiu na infância e que ele ocupou. Olho para o dente na palma da mão e busco pelo potinho de guardar dentes, o potinho curioso e bizarro em que minha mãe guardava meus dentes de leite e que agora se materializa ali, sobre a pia, de frente para o espelho no qual eu avalio o estrago e assisto mais dentes pularem da boca para a mão e da mão para o pote. “Estou sonhando”, sonho no sonho, e sei que estou sonhando mesmo, porque potes de dentes não se materializam feito mágica em pias reais e porque vira e mexe sonho com meus dentes cometendo suicídio. Minha mãe sempre diz que sonhar que se está perdendo os dentes é mau presságio e significa morte, mas tanta gente já está morrendo — já são quase 115 mil mortos! — e estou longe de ter tantos dentes assim, então não podem me culpar por isso, não é? “Ei, a culpa continua sendo do desgoverno que vocês elegeram e não dos meus dentes de sonho, tá?!”. Mas cada vez mais dentes caídos estão lá, e cada vez mais sangue está lá, e cada vez mais culpa está lá, e eu sacolejo a primeira pessoa que encontro no sonho, implorando, com a boca cheia de gaze e sangue e lágrima e ranho e nenhum dente: “me acorda, me acorda, me acorda, pelamordedeus, me acorda!”. 

Antes que o tapa da pessoa estale no meu rosto para me tirar do surto, eu acordo. Acordo e arfo. Acordo e vejo que não há pessoa nenhuma, porque quem quer que estivesse ali provavelmente já está acordado faz tempo. Acordo e suspiro de alívio. Acordo e passo a língua devagar pelos dentes, conferindo se estão mesmo todos na boca, e… ah, merda!

Um bráquete do meu aparelho se soltou.

Táscia Souza

Sonora para reportagem imaginária engavetada

Sonora para reportagem imaginária engavetada

Emanuel, 23 anos, estudante de engenharia mecânica e consertador de relógios

A maioria desses relógios era do meu vô Elias. Mas alguns fui eu mesmo que comprei. Desde que eu vim morar aqui, na casa deles, dele e da minha minha vó, né?, ele me ensinou a consertar relógios. Era minha brincadeira predileta. Enquanto meus colegas sonhavam com um Lego no Natal, ainda que nenhuma família aqui da rua tivesse dinheiro pra comprar, eu brincava de encaixar pecinhas de engrenagem. Algumas minúsculas. Enquanto o pessoal do bairro se reunia pra brincar de pique-esconde, meu passeio preferido era ir à feira de domingo, naquela parte que parece um mercado de pulgas, sabe?, acompanhar meu vô à procura de relógios antigos que a gente pudesse consertar. Desmontar e remontar. Usar peças descartadas em outros relógios também descartados, fazendo com que eles fossem capazes de marcar o tempo de novo. 

Agora que ele morreu dessa tal de síndrome respiratória aguda, os relógios estão parados, porque ainda não consegui encontrar um ponteiro específico pra horas que passam tão rápido por dias todos iguais.

Táscia Souza