Category Archives: Táscia Souza

Com todos os ites que se possam imaginar.

Dese(sc)r(i)tora

Dese(sc)r(i)tora

Desaprendi a escrever. Continuo sabendo juntar as letras tal qual ensinado na infância, tendo ciência de que bê mais a é igual a bá, de que “o rato roeu a roupa do rei de roma” não dá conta de todos os sons que o erre pode ter e de que meu nome tem um dígrafo consonantal com o qual a maioria das pessoas não sabe lidar mesmo quando soletro. Também ainda sei pontuar, ou ao menos acho que sei, e quase nunca cometo o deslize de separar o sujeito do predicado, ou de deixar os apostos mais comuns desprovidos da guarda costumeira das vírgulas, a não ser por pura desatenção. Mas escrever, escrever mesmo — aquilo que se faz não com o deslizar do lápis sobre o papel, ou com o pousar dos dedos sobre as teclas, mas com ser tempo mais do que tê-lo —, isso já não sei mais.

Táscia Souza

Breve destratado sobre memória

Breve destratado sobre memória

Precisava, até uma data determinada, circulada no calendário, escrever um tratado sobre memória. Mas, para isso, precisava primeiro escrever um aviso recordando a si mesmo de que precisava escrever um tratado sobre memória. Antes, porém, para não se esquecer da importância de registrar o alerta, precisava incluir o remédio para a memória, que estava acabando, na lista de compras. O que até teria sido possível se não tivesse se esquecido de tomar o último comprimido da cartela anterior, que jazeu lá, solitário, único resquício do tratado não entregue.

Táscia Souza

A montanha e o rio

A montanha e o rio

Antes de desaparecerem pessoas, tinha desaparecido a montanha. A mãe contava que foi depois que os aviões com o símbolo da nova empresa que se instalara sobrevoaram baixo a região. A eles, seguiu-se a chegada das máquinas gigantescas, ainda mais colossais aos seus olhos de menina. Depois vieram as escavações, as barragens, o barulho dos equipamentos, as explosões que faziam tremer as paredes e que derrubaram no chão o quadro ovalado sobre a porta que exibia a foto do casamento da avó e do avô. Retrato batido ao ar livre, a montanha de fundo, à beira do rio. Naquela primeira vez, segundo a mãe, os cacos de vidro se misturaram ao pó preto repleto de partículas luminosas que cobria tudo. Até os lábios da avó, trêmulos de dor, enquanto seu lado da foto, juntamente com a paisagem de fundo, esmaecia-se no chão.

Incríveis as coisas às quais o ser humano se habitua. Ruídos ensurdecedores; cacos quebrados de vidros, de paisagens ou de relações; um antes inteiro reduzido a pó. A doença da avó era cotidiana. O pó também. Ela pairava sobre a cama, pousava-se em seus olhos doloridos de um socorro mudo, incrustava-se no quarto lúgubre desde que eu me entendia por gente. O pó pairava no ar, pousava nos móveis, incrustava-se na sola dos pés. Não sabíamos o que era não ter a avó enferma, assim como não sabíamos o que era não ter os pés cor de grafite, como se aquela fosse a natureza da própria pele ali embaixo, cinzenta, mas também parecendo quase brilhante, metalizada. Tínhamos pés de ferro, assim como ferruginosa era a água que bebíamos e, mesmo que na escola tivessem explicado que a oxirredução era um fenômeno inverso, enferrujado era o oxigênio que respirávamos. Eu nunca notara que sangue também tinha gosto de ferrugem, até aquele dia.

Não lembro o que veio primeiro, se o estouro ou os gritos. A única certeza é a de que não foi o alarme, que só mais tarde saberíamos não ter soado por ter sido uma das primeiras coisas engolfadas pela lama. O alarme e as ruas. O alarme e as casas da várzea. O alarme e os carros. O alarme e os animais domésticos. O alarme e centenas de pessoas. Ilhados no topo do morro do qual havia anos também tentavam nos tirar — para, com outros tantos anos, tirarem-no de nós — observamos da janela a lama varrer todo o vale. Do quarto, com uma voz que eu nunca ouvira a não ser em gemidos, a avó também gritou.

Watu! Watu!

E os berros no vale.

Calma, avó. Não vai chegar aqui. A lama não vai chegar aqui.

E o choro na sala.

O avô! Watu!

Respira, avó. Respira.

A lama… Matou Watu. A lama matou o avô.

Quis dizer-lhe que o avô morrera havia muito. Que a mina levara o avô bem antes da lama. Que o avô era apenas um retrato numa fotografia sem vidro sobre a porta. Mordi a língua, sem conseguir, e o sabor do ferro inundou minha boca. Em seus olhos abertos, e depois definitivamente fechados, o desespero. 

Quando a mãe entrou no quarto, rosto molhado e moldura ovalada em punho, o avô tinha se apagado da foto. O rio também.

Táscia Souza