Category Archives: Heitor Luique

 Um porém 

 Um porém 

— Operadora Juliana, boa tarde! Em que posso ajudar? 

— Boa tarde, Juliana! Ligo para reclamar de uma cobrança indevida. 

— Seu nome completo, senhor? 

— Luiz Ernesto Franco de Castro 

— Por favor, preciso conferir seu cadastro. 

— Pois não?! 

— CPF? 

— 050.016.029-13 

— Estado civil? 

— Divorciado. 

— Se separou, senhor?! 

— Oi?! 

— Nada! É que aqui ainda consta casado… Endereço? 

— Rua Maria Firmina dos Reis, 65. 

— Bairro Nova Holanda? 

— Sim. 

— Olha, somos vizinhos! 

— Como? 

— Pensei alto, senhor… Data de nascimento? 

— 15 do 3 de 85 

— Tá conservado. 

— Não entendi. 

— Tá confirmado, senhor. — (soltando os cabelos) 

— O quê? 

— Que se trata do senhor mesmo. 

— Ah, sim… 

— Seu Lu, eh (eh), quer dizer… O senhor sabe me dizer a última vez em que atualizou a sua foto 3×4 em nosso sistema? — (retocando o batom com o espelho de mão) 

— Não faz muito, talvez no fim do ano passado. 

— Nossa! Nem parece. — (pressionando sutil e repetidamente os lábios entre si) 

— Não compreendo, Juliana. 

— Pode ser Ju, senhor… É que olhando a sua foto eu daria uns 28, assim, 29 no máximo. Neste caso precisaríamos trocar, pois o nosso sistema apenas aceita uma 3×4 dos últimos 5 anos. 

— Ok. Agora já podemos avançar pro meu problema, de fato? 

— Sim, sim. Um momentinho, por favor. Estarei silenciando o microfone, mas sigo na linha. 

— Tudo bem. 

* * * 

— Nossa! Ele é gato, amiga. Até que enfim me ligou um bofe de respeito! 

— Sorte a sua… Só tenho pegado aposentado à toa, sabe?! Ou adolescente pré-pago… 

— Vem cá ver a foto. 

– Humm, que pão! 

— Tira o olho que eu já tô com a manteiga na mão. 

— Mas com a faca também? 

— Quase… 

* * * 

— Seu Lu(uu), não desliga, tá?! 

— Ainda demora muito? 

— Uns cinco minutinhos, não mais. 

— Tudo bem. 

* * * 

— Ele tem uma voz tão charmosa. 

— Anda com isso, Juliana! 

— Ai, Stella… Não sei mais o que falar. 

— Se vira, gata! 

* * * 

— Senhor?! Me escuta? 

— Sim. 

— Ainda não temos um retorno a respeito de sua contestação. 

— Por favor, poderia transferir a ligação para a sua superior ou algo assim? 

— Nada disso, seu Lu; sou euzinha mesma a responsável por essas questões… Este seu número de celular que consta no sistema tem whatsapp? 

— Tem. 

— Pois bem… Loguinho, eu te chamo por lá e te dou um novo parecer. 

— Você prefere assim? 

— Claro, aí eu posso te explicar melhor e te oferecer um tratamento personalizado e marcar algo mais… Não se esqueça que o senhor é um cliente gold. 

— Como preferir, aguardo com urgência. 

— Não seja por isso, seu Lu, acabei de te mandar um oi. Fique à vontade para me responder, sem cerimônias. 

— Obrigado. 

— Nada que agradecer, um prazer começar a conhecê-lo. 

— Algo mais? 

— Estarei encerrando o seu atendimento e enviando o número do protocolo. 

— Perfeitamente. Tchau, tchau. 

— Beijinhos, seu Luiz… Ah! Um detalhe final: sua profissão está em branco. Estranho… Não consta aqui e eu não tinha reparado. Precisamos preenchê-la. Você pode me dizer? 

— Professor. 

— Professor?!?! 

— Sim. 

– Um momentinho que eu vou passar o seu caso para a minha chefia. 

* * * 

— Aff… Stella, seu ramal tá liberado? 

— Sim. 

— Então toma, faça bom proveito. 

Heitor Luique

Bizarro

Bizarro

Veja só, em uma certa-feira, nos idos da minha adulta-juventude, voltava eu do trabalho à casa, levado pelos meus pés espremidos nesses sapatos desnecessários e desconfortáveis, inaptos para médias e longas distâncias — por tanto, eu era levado pelos meus pés e pela minha teimosia contumaz; o ponto de ônibus era justamente em frente ao escritório. 

Já quando eu alcançava a Rua Paracambi, desaguou uma óbvia chuva de verão (não notada pela improdutividade no ato de contemplar o firmamento). De impulso, recorri em um salto a um bar que se abrigou ao meu lado. As nuvens não indicavam tanta pressa. 

Observado, porque a camisa azul-gelo destaca o corpo sob as gotas e sob o pano, me sentei com projetada confiança e solicitei a cerveja mais em conta, dentre às maltadas; falei ao telefone como se esperasse alguém, a segunda pseudoligação foi interrompida pela voz e violão, que por sua vez sugeriu a segunda cerveja. A segunda música eu não conhecia, mas, se não estou enganado, o cantor a antecedeu dizendo que era uma releitura de Seja Você, gravada por Pitty.

Heitor Luique

Texto elaborado na oficina “Arquétipos e criação de personagens” realizada no Palavre-se, Tenetehara, agosto de 2019.