Category Archives: Mariana Virgílio

Se tirar o que define sobra o coração.

Dentes

Dentes

No mesmo dia em que o médico gritou “nasceeeeeu”, outro, lá fora, decretava o lockdown. E nada de visitas com beijinhos na mão, celebrações de batizado e festa de um ano. Vivia realmente isolada. Aos poucos, começou a sentir-se estranha, como se tivesse algo que ninguém mais ali tinha e, por isso, vivia quieta, com a boquinha fechada. 

Os pedidos eram muitos: “Sorri pra mamãe…”, “Sorri pra vovó”, mas ela escondia com medo da vergonha de decepcionar pelo que iriam encontrar os mascarados que a observavam. 

Sentiu-se feliz quando começou a usar a máscara também, não precisava disfarçar ou tentar esconder. Queria até dormir de máscara. Os pais, ainda que receosos, se tranquilizaram com o zelo que a criança tinha, quando nenhuma outra suportava. 

Todo seu incômodo se resolveu somente quando começou na escola. Por um descuido, a coleguinha retirou a máscara e, ao sorrir, viu apontar nela um pontinho branco, igual ao que nascia em si. 

Ufa! 

E foi assim que nunca mais parou de sorrir.

Mariana Virgílio

Depois do carnaval

Depois do carnaval

No meio de março, tinha estabelecido as listas de seus programas para “quando o carnaval acabar”. E quanto esse acabou, nem deu tempo de toda a ressaca sair do corpo e leu bem grande a nova ordem mundial: quarentena. 

Desmarcou os encontros a que nem queria ir.

Desmarcou os que queria.

Desmarcou as consultas médicas. 

Como sendo hipocondríaca fez da casa o local mais seguro e também o melhor ambiente de trabalho. 

Ao ligar a TV, não só o vírus matava. O coração de um músico e o de um escritor também decidiram parar de bater. 

Nem remédios, nem cafés, nem cachaças. Naqueles dias só atendia músicas e poesias. Precisava criar imunidade: esperança.

Mariana Virgílio

Diagnóstico: infância

Diagnóstico: infância

No verão ela e a irmã tinham a brincadeira preferida: piscina. Mas dentro da piscina tinha algo especial, elas eram sereias. Como era a mais nova, a irmã mais velha se encarregava de montar o plano. Eram sereias que precisavam desbravar o fundo mar. Tinham grandes desafios, descobriam grandes mistérios. Porém, como era a mais nova, a irmã pedia que ficasse na porta da caverna, cuidando da entrada, enquanto ela desbravava o local. Graça nenhuma ficar parada na ponta da caverna. Chorando, gritava a mãe:

– Manhêêêêêê, ela não quer me deixar entrar na caverna.

A mãe olhava a piscina de plástico rasa, com as duas irmãs que quase se encostavam. Sem caverna. Sem fundo do mar.

– Que que isso? Que besteira, chorando por algo que nem existe.

Não adiantava insistir. A mãe não entendia, já havia se curado da doença chamada infância.

Mariana Virgílio