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O dia em que eu viajei com Gregor Samsa

O dia em que eu viajei com Gregor Samsa

Assento ao lado da janela, poltrona treze, meu número de sorte. Não tem como dar errado. Dessa vez nada de ônibus quebrando na estrada, nada de ar-condicionado congelando os ossos ou chiclete colado no cinto de segurança. Coloco fé no treze, nada de engarrafamento ou cheiro de Cheetos nauseando os passageiros. Olho o celular, cinquenta por cento de bateria, é o suficiente. Coloco Caetano para cantar na playlist, apoio o braço no parapeito da janela e admiro a imagem do Rio de Janeiro em um anoitecer de 40 graus.

O movimento do ônibus me embala junto com a música que eu já nem escuto mais, meus olhos fechando e abrindo em uma preguiça gostosa. Que paz, meu Deus, que paz. Fecho os olhos e sinto só um balanço ritmado, abro os olhos e vejo a paisagem da serra de Petrópolis. Fecho os olhos, Caetano. Abro os olhos, o vulto de montanhas azuladas. Fecho os olhos, inspiro. Abro os olhos, o risquinho prateado que a lua crescente traça no céu. Fecho os olhos, expiro. Abro os olhos, antenas.

Tomo um susto. Duas anteninhas saindo do vão formado pelo vidro da janela. Pode ter sido só um sonho. Mantenho os olhos abertos. As antenas começam a se mover na minha direção, percebo o vulto de um corpinho que, no escuro, não consigo identificar. Será que… Não. Mariposa, pode ser uma mariposa. Ou um besouro. Quem sabe até uma formiga que cresceu demais. Qualquer inseto que não aquele. Acendo a lanterninha e o vulto se esconde. É rápido, mas não o suficiente para me impedir de vê-lo. Barata. Filhote ainda, mas irremediavelmente barata.

Grito? Faço um escândalo? Tiro um dos sapatos e caço a maldita pelo ônibus? Finjo de sonsa e ajo como se nada estivesse acontecendo? Caetano agora canta para ninguém, os fones de ouvido apoiados no meu joelho, as minhas costas eretas, tensas. Me afasto alguns centímetros da janela, me armo com um pedaço de papel e fico observando. Se ela aparecer, esmago. Esforço inútil, ela é ligeira, persistente e meus reflexos são lentos. Ela dá as caras e mal eu penso em levantar o braço, já se escondeu novamente. Viajamos assim, lado a lado. Eu, alerta a qualquer aproximação. Ela, turista.

Raíssa Varandas

 

Cama de hospital

Cama de hospital

Ninguém quer estar em uma cama de hospital. Flávia também não queria, mas doenças não seguem vontades, apenas aparecem. Aos 35 anos ela foi diagnosticada com câncer por Lair, médico que a acompanhou em todos os momentos do tratamento.

Foram meses de cirurgias, dores e lágrimas familiares, mas Flávia, fortalecendo estatísticas, não resistiu, e Lair perdeu uma paciente. E a esposa.

Sorrisos, promessas e beijos compuseram os últimos dias de Flávia e Lair como cônjuges.

Tudo isso em uma cama de hospital.

Daniel Furlan

Sol

Sol

Chegou tímido, mas feliz. Afinal, chamaram por ele. Por lá ficou, sorrindo e alegre, durante dois dias. No terceiro, ouviu alguém dizer que já estava demais.

– Que calor é esse, gente! Podia cair uma boa de uma chuva!

Ficou triste, mas não se abateu. As críticas ficaram mais ferozes.

– As represas estão secando, precisamos de chuva!

Assim ele fez, apesar de não se sentir culpado. Saiu de cena, passou a bola, chamou São Pedro. Choveu, choveu, choveu. Chamaram por ele de novo. Veio feliz e sorridente.

No dia seguinte, porém, já estavam reclamando. Desistiu. Foi fazer terapia.

– Como era o relacionamento com seus pais na infância?

Ele não lembrava. Finalmente percebeu que, por não ter lembranças de quando era criança, tinha dificuldades em lidar com a infantilidade do ser humano. Voltou confiante. Afinal, chovia há duas semanas.

Mal trabalhou por 10 horas e contabilizou 11 vezes seguidas em que alguém reclamou do calor. Nem os vendedores de picolé aliviaram, pois seus carrinhos não davam mais conta de gelar a tempo.

Fez as malas, saiu de férias para espairecer.

Choveu durante três anos.

Paloma Destro