Category Archives: Segunda opinião

(argumento para um filme que não será)

(argumento para um filme que não será)

Num futuro distópico, relacionamentos são autorizados pelo Estado por no máximo três anos, tempo médio em que o amor se desfaz, segundo pesquisas científicas. Os que descumprem a lei são enviados a colônias penais na Antártida. Pedro e Lúcia, rebeldes e indomáveis, lutarão para permanecer juntos até a morte: pela infidelidade, preservarão a mútua lealdade.

W. Del Guiducci

 

Inabalável

Inabalável

Apresentou um largo sorriso assim que embarcou no ônibus da linha 605, destino Milho Branco, Zona Norte. Do lado de fora uma chuva desabava sobre a cidade fria, triste, feia em cores gris. Uma fila de veículos perdia-se de vista na Rua Bernardo Mascarenhas. Efeito da grande precipitação e da cancela da via férrea que havia liberado o fluxo segundos antes. Trem e chuva são sinônimos de caos na Manchester mineira.

Tinha lá seus sessenta e tantos anos. O rosto marrom meio encardido era cheio de vincos, cada qual com uma história, às vezes triste, às vezes alegre. A testa era comprida. Minguados fios brancos ainda lhe restavam na cabeça.

Como era de se esperar, teve que ficar de pé. A condução estava lotada. Jovens desatentos plugados em universos digitais ignoraram sua presença. Foi-se o tempo das gentilezas! Como não havia muitas alternativas, aconchegou-se no cantinho perto do motorista. Boa noite disse ao condutor. Não tive como escapar desse aguaceiro, mas daqui a pouco chego à minha casinha e pego aquela sopa de entulho da patroa. Essa vida é sofrida, mas é boa!

Calado, o motorista apenas lançou um olhar negligente em direção ao seu interlocutor. Fiquei mais de quatro horas hoje esperando para realizar um exame, continuou sua narrativa sem perceber o desinteresse de quem estava a sua volta. Debaixo da jaqueta de tecido sintético de cor azul-marinho, sentia calafrios na pele enrugada sob a camisa de malha de mangas compridas encharcada. Estava febril, mas não queria entregar os pontos. Aprendeu a ser forte como um touro desde menino. Essa era uma das imposições que a vida lhe dera.

No hospital a moça disse que hoje não era dia de atendimento de especialidades e que não dava nem pra marcar um exame. O homem que conduzia o ônibus continuava sem querer saber da conversa. Vou ter que voltar amanhã e começar tudinho de novo. Sair cedo de casa pra tentar ser um dos primeiros da fila. Quero realizar esse exame logo. Imagina só, estou sentindo dor e ainda nem sei o que é. O motorista silencioso seguia seu caminho.

Os jovens viajavam por meio dos fones de ouvido sem perceber que o futuro de cada um podia estar ali, escancarado, gritado, sinalizando que o tempo é imperdoável e não faz concessões! Ignorando ser ignorado, sem perder o sorriso, disse pela segunda vez:

— Essa vida é sofrida, mas é boa!

Marcos Araújo

 

Esqueceram de mim

Esqueceram de mim

– Vou ter que ir a um psicólogo.

– Por quê?

– As pessoas andam se esquecendo de mim. Isso está me fazendo mal. Preciso desabafar.

Marcou um horário na clínica de psicologia, mas o psicólogo se esqueceu da consulta. O trauma nunca foi curado.

Daniel Furlan