Category Archives: Segunda opinião

Antídoto

Antídoto

Acordou.

Levantou.

Foi ao banheiro.

Ainda sem proferir uma palavra sequer, lembrou de sua própria voz.

E foi inundada pelo medo: “E se minha voz não sair mais da minha boca? E se eu nunca mais puder falar?”.

O primeiro lamento que veio em sua mente foi: “Imagina não poder mais xingar em alto e bom tom??!?!”.

Mais do que depressa, lascou um sonoro “PUTA MERDA!”.

Gilze Bara

Kinder Ovo

Kinder Ovo

Dirigia irritado. A ligação do colégio avisando que seu filho se envolvera em uma briga o tirou do sério. Sempre fora boa gente, nunca brigou sequer puxando o cabelo do coleguinha. Agora seu filho faz uma dessas, com apenas doze anos e já encrenqueiro. Quebrou o dente do amiguinho. Tudo por causa de uma piada. A tal do Kinder Ovo, que sempre ouviu quando criança, e nunca o incomodou. Era apenas uma piada. Lidava bem com ela, e com as outras dezenas, incessantes, que sempre traziam um pouco de ranço em seu íntimo. Mas deixava pra lá. Sem brigar por essas bobagens conseguiu estudar, ter um bom emprego, família. Estava há dez anos no escritório de advocacia, um dos melhores da cidade, sempre competente, elogiado pelos patrões. Foi o que mais ganhou casos, os mais difíceis. Sempre postulou a vaga de sócio, mas, das três que foram abertas nos dez anos, ele não as conseguiu. “Talvez na próxima”. Os que conseguiram não eram melhores que ele. Perderam vários casos, mais do que ganharam e… foram promovidos. Mas continuaria a se esforçar. Era o único preto do escritório, sempre é mais difícil quando se é preto. Mas nunca se incomodou com as piadinhas dos colegas de trabalho. Naquele dia mesmo um deles havia relembrado a do Kinder Ovo, quando soube o motivo da briga. Riu-se. Pois era apenas uma brincadeira. E como uma puxa a outra, acabaram sendo umas dez… Mas era só brincadeira. O tapinha no braço evidenciava. Se brigasse hoje não seria um dos advogados do escritório, apesar de que sabia que tinha potencial pra ser sócio. Tinha de ser bonzinho por que era preto… Tinha de ser bonzinho por que era preto?

“Joga pra cima. Se voar é urubu, agarrar na árvore é macaco, e se cair no chão é bosta.”

Freou bruscamente e virou o carro. 

Tinha que quebrar uns dentes.

Paulo Cesar Silva

Surto

Surto

Tomou uma taça de vinho antes de deitar. Pensou que o álcool iria ajudá-lo a dormir fácil. Ledo engano! Há dias que seu sono era parco. Sua cabeça estava um turbilhão de pensamentos. A maioria deles atravessava sua mente por causa do trabalho na firma de contabilidade. Os problemas se multiplicavam feito números e seus colegas de serviço haviam se tornado pessoas tristes, que tinham abandonado seus sonhos antigos sem colocar outros no lugar. Faltavam-lhes ideais. 

Mas com ele não seria assim. Ele brigava. Ele bradava, internamente, para não sucumbir. Tinha que haver um motivo maior, uma causa a acreditar, um desejo a se concretizar. Por isso ficava aceso, enquanto as horas atropelavam a madrugada. 

Depois de mais uma noite mal dormida, levantou-se, trocou de roupa como se aquele fosse mais um dia. Pela fresta da janela, o sol entrava manso. Tomou uma xícara de café preto com três gotas de adoçante. Pegou as chaves, abriu a porta, mas não conseguiu sair. Algo segurava seus pés, que não conseguiam ultrapassar o limite entre a porta e o corredor. A cada tentativa de sair, mais pressão ele sentia. Como se alguém muito forte o estivesse agarrando por trás. Ficou assustado. O que era aquilo,  meu Deus? Que sensação era aquela? Seria um espírito maligno, pensou. 

Haveria presenças sobrenaturais naquele apartamento que se manifestavam, justamente, naquela hora. No dia em que decidira dar um basta e mandar, às favas, aquela vida ordinária. Ele estava parado na porta, imóvel, querendo sair, mas não conseguia. De repente, a porta do vizinho, de frente da sua, se abriu. E o homem que ele mal conhecia também ficou agarrado na saída. O outro morador tentou romper a força que o segurava também, mas as tentativas foram em vão. O vizinho começou a gritar, e era possível ouvir gritos dos outros apartamentos. A ficha dele então caiu: o mundo inteiro estava preso dentro de casa. Ele entrou num surto. 

Ficaria para sempre encerrado ali? E a sua caminhada na beira do rio, que tanto gostava? E o sorriso da moça do escritório ao lado do seu? O cheiro da pipoca da carrocinha da esquina? O teatro a que gostava de ir no fim de semana? A gelada com os amigos de vez em quando? O almoço de domingo com os pais? E se nada disso mais existir? E se a vida não voltar ao que antes era? E se ele não puder respirar? E se? Se?… Ele acorda num sobressalto. Estava encharcado de suor. Olha em volta. Era seu quarto. Seu coração desacelera. Ele fica aliviado e volta a ter esperança de que tudo vai passar. É apenas uma questão de tempo para que o mundo recomece e, quem sabe, desta vez, para melhor!

Marcos Araújo