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Ciúme em tempos pandêmicos

Ciúme em tempos pandêmicos

Ela andava terrível nos últimos tempos…

Cansada, enjoada, sentindo-se contrariada, rebelde.

Fazia um misto de revolta e luta por independência.

Por sua independência.

Às vezes simplesmente ignorava as ordens cerebrais.

Outras vezes as cumpria, mas com falhas, deixando sempre algo escapar.

Quando se concentrava bem, até que fazia direitinho tudo o que tinha que fazer.

Fato é que ela pagava o preço por tanto trabalho.

Eram mais de 12 horas de labor por dia.

Na secura do ar ou no úmido da água.

Digitando, digitando, digitando…

Lavando, lavando, lavando…

E quando ela parava, não parava de verdade – tinha sempre um algo mais.

E se era solicitada a fazer aquilo que lhe dava tanto prazer… nada.

Seca. Entressafra.

Recusava-se a colocar as escritas da mente no branco da tela do computador.

Foi quando um amigo deu aquela cutucada e matou a charada:

– Desenha! A mão deve estar com ciúme do teclado!

E ela desenhou as letras com lápis, numa folha de papel.

E a paz se fez novamente.

Gilze Bara

A casa de vidro

A casa de vidro

Desde criança eu tenho tara por ver como é a casa dos outros. Reparar mesmo, olhos fixos, curiosos. Cresci numa cidade do interior, dava pra fazer isso com facilidade, num passeio prosaico pra brincar na pracinha. Cresci assim e a cidade também. Mudei de cidade, os prédios eram maiores, foi ficando mais difícil. Demorei, mas me acostumei. Até esqueci (cheguei a acreditar).

Até que a pandemia chegou. E com ela a lives, as aulas à distância, a vida pela tela. Disruptivamente tudo voltou, com requintes, como aquele velho amigo que a gente não vê faz tempo, mas que sabe tudo da gente. Parece que o tempo não passou. A janela agora é uma tela. Transparência. 

Outro dia mesmo participava de uma reunião on-line. Poderia ter saído, tinha trabalho a fazer e a coisa não estava produtiva. Não mesmo. Mas um dos participantes tinha uma casa linda. Pé direito alto, muita luz, vidros largos com esquadrias de madeira. Piso de tábua corrida, móveis minimalistas. Sofá delicioso. Fiquei imaginando quem era essa pessoa, com essa casa. Será que ele escolheu tudo? 

A sua interlocutora escolheu um enquadramento ruim. Vergonha? Ou será que tinha mais gente lá atrás. Um filho, vendo TV? Só dava pra ver aquela quina de uma sala, cheia de cartazes numa parede, do outro lado, outra parede, amarela. Não gostei. Por que alguém pinta uma parede de amarelo?

A loira de cabelos tingidos, a terceira participante, tinha dois quadros em preto e branco atrás. Fotos de uma grande cidade, talvez Nova Iorque. Quadros da Tok&Stok. Não havia livros. A fala seguiu o mesmo rumo: sem grandes interesses. Insossa. 

Tive uma epifania. Santa Clarice Lispector. Será que a vida anda chata demais em casa? Ou será que eu tô vendo agora como é, de fato. A pandemia muda tudo, eu ouço por aí. Muda mesmo. O mundo não tem volta depois que a gente vê a casa das pessoas. Tem cura pra isso? 

Evandro Medeiros

 

 Um porém 

 Um porém 

— Operadora Juliana, boa tarde! Em que posso ajudar? 

— Boa tarde, Juliana! Ligo para reclamar de uma cobrança indevida. 

— Seu nome completo, senhor? 

— Luiz Ernesto Franco de Castro 

— Por favor, preciso conferir seu cadastro. 

— Pois não?! 

— CPF? 

— 050.016.029-13 

— Estado civil? 

— Divorciado. 

— Se separou, senhor?! 

— Oi?! 

— Nada! É que aqui ainda consta casado… Endereço? 

— Rua Maria Firmina dos Reis, 65. 

— Bairro Nova Holanda? 

— Sim. 

— Olha, somos vizinhos! 

— Como? 

— Pensei alto, senhor… Data de nascimento? 

— 15 do 3 de 85 

— Tá conservado. 

— Não entendi. 

— Tá confirmado, senhor. — (soltando os cabelos) 

— O quê? 

— Que se trata do senhor mesmo. 

— Ah, sim… 

— Seu Lu, eh (eh), quer dizer… O senhor sabe me dizer a última vez em que atualizou a sua foto 3×4 em nosso sistema? — (retocando o batom com o espelho de mão) 

— Não faz muito, talvez no fim do ano passado. 

— Nossa! Nem parece. — (pressionando sutil e repetidamente os lábios entre si) 

— Não compreendo, Juliana. 

— Pode ser Ju, senhor… É que olhando a sua foto eu daria uns 28, assim, 29 no máximo. Neste caso precisaríamos trocar, pois o nosso sistema apenas aceita uma 3×4 dos últimos 5 anos. 

— Ok. Agora já podemos avançar pro meu problema, de fato? 

— Sim, sim. Um momentinho, por favor. Estarei silenciando o microfone, mas sigo na linha. 

— Tudo bem. 

* * * 

— Nossa! Ele é gato, amiga. Até que enfim me ligou um bofe de respeito! 

— Sorte a sua… Só tenho pegado aposentado à toa, sabe?! Ou adolescente pré-pago… 

— Vem cá ver a foto. 

– Humm, que pão! 

— Tira o olho que eu já tô com a manteiga na mão. 

— Mas com a faca também? 

— Quase… 

* * * 

— Seu Lu(uu), não desliga, tá?! 

— Ainda demora muito? 

— Uns cinco minutinhos, não mais. 

— Tudo bem. 

* * * 

— Ele tem uma voz tão charmosa. 

— Anda com isso, Juliana! 

— Ai, Stella… Não sei mais o que falar. 

— Se vira, gata! 

* * * 

— Senhor?! Me escuta? 

— Sim. 

— Ainda não temos um retorno a respeito de sua contestação. 

— Por favor, poderia transferir a ligação para a sua superior ou algo assim? 

— Nada disso, seu Lu; sou euzinha mesma a responsável por essas questões… Este seu número de celular que consta no sistema tem whatsapp? 

— Tem. 

— Pois bem… Loguinho, eu te chamo por lá e te dou um novo parecer. 

— Você prefere assim? 

— Claro, aí eu posso te explicar melhor e te oferecer um tratamento personalizado e marcar algo mais… Não se esqueça que o senhor é um cliente gold. 

— Como preferir, aguardo com urgência. 

— Não seja por isso, seu Lu, acabei de te mandar um oi. Fique à vontade para me responder, sem cerimônias. 

— Obrigado. 

— Nada que agradecer, um prazer começar a conhecê-lo. 

— Algo mais? 

— Estarei encerrando o seu atendimento e enviando o número do protocolo. 

— Perfeitamente. Tchau, tchau. 

— Beijinhos, seu Luiz… Ah! Um detalhe final: sua profissão está em branco. Estranho… Não consta aqui e eu não tinha reparado. Precisamos preenchê-la. Você pode me dizer? 

— Professor. 

— Professor?!?! 

— Sim. 

– Um momentinho que eu vou passar o seu caso para a minha chefia. 

* * * 

— Aff… Stella, seu ramal tá liberado? 

— Sim. 

— Então toma, faça bom proveito. 

Heitor Luique