Category Archives: Segunda opinião

Reboot no sistema

Reboot no sistema

A paralise é azul. Ele a sente em cada músculo sob o traje espacial, incomunicável em órbita, flutuando. 

A paralise é laranja. Ela cobre seus olhos em duas cortinas de cabelo, escondendo a jovem de seus contemporâneos que celebram o aniversário. 

Música. A estática indistinguível da central de comando e da sala de estar é pop. Ruge nos vácuos que se formam nos dois pares de ouvidos, laranja e azul. 

“Can you hear me?” 

“Can you-“ 

“Can you-”

“Can-”

Nos documentários da TV, os icebergs derretem. Um grande ruído e blocos de gelo se soltam da paralise, em queda livre para o grande abismo. Quando ele diz tudo que tem a dizer a quem já sabe, a estática paralisada se solta e ele cai. Quando ela desiste de dizer sequer mais uma palavra a quem não ouve, a estática paralisada se solta e ela flutua. 

A ponte é estreita, laranja e azul neon. Começa no parapeito da varanda do décimo sexto andar, se estendendo para o céu azul em degraus laranjas. Ela os sobe ansiosamente, os sobe em fuga da paralise, mas seus pés se enroscam em si mesmos. Debaixo da grossa luva azul, ele para de cair. Oito dedos enganchados são o que ambos precisam para não escorregarem daquela ponte e não caírem novamente em paralise. 

Aquele tal fio do qual falavam. Aquele It. 

“Can you hear me?” 

Sim. 

Adriana Miranda

Déjà vu de si

Déjà vu de si

Como a situação beirava o insuportável, ela cedeu e foi ao médico.

– Em que posso ajudar?

– Abri a caixa de Pandora, ou melhor, a minha caixa de fotografias, do tempo em que ainda revelávamos e imprimíamos.

– Sim, e o que houve? Crise de rinite?

– Só se for rinite no coração, doutor… Não estou suportando olhar as fotos e lembrar dos momentos que elas eternizaram.

– Mas por quê?

– Porque eram momentos que estavam esquecidos na minha memória. E eu tô puta com isso. Como havia esquecido tudo que vivi e senti? Como consegui ligar o piloto automático e simplesmente seguir sem lembrar??? Minha memória me traiu. Duas vezes. Primeiro, por esquecer tanta coisa da minha vida. E, depois, por lembrar. Como vou continuar vivendo lembrando de tudo aquilo, sentindo um pouco do que senti em cada momento retratado?

– Isso é simples. Toma este psicotrópico. Duas vezes por dia, mas nunca em jejum. Ele vai deixar sua memória anuviada. Nada de lembranças!

– Por quanto tempo?

– Pra sempre.

Gilze Bara 

Diagnóstico: infância

Diagnóstico: infância

No verão ela e a irmã tinham a brincadeira preferida: piscina. Mas dentro da piscina tinha algo especial, elas eram sereias. Como era a mais nova, a irmã mais velha se encarregava de montar o plano. Eram sereias que precisavam desbravar o fundo mar. Tinham grandes desafios, descobriam grandes mistérios. Porém, como era a mais nova, a irmã pedia que ficasse na porta da caverna, cuidando da entrada, enquanto ela desbravava o local. Graça nenhuma ficar parada na ponta da caverna. Chorando, gritava a mãe:

– Manhêêêêêê, ela não quer me deixar entrar na caverna.

A mãe olhava a piscina de plástico rasa, com as duas irmãs que quase se encostavam. Sem caverna. Sem fundo do mar.

– Que que isso? Que besteira, chorando por algo que nem existe.

Não adiantava insistir. A mãe não entendia, já havia se curado da doença chamada infância.

Mariana Virgílio